São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

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JOSÉ GERALDO COUTO

A indesejada das gentes

Ao optar por outro vôo, o Grêmio escapou da tragédia de Congonhas; há meio século, o Manchester não teve essa sorte

A DELEGAÇÃO do Grêmio escapou por pouco, segundo consta, de embarcar no avião da TAM que caiu em Congonhas. Na hora de decidir o trajeto da viagem para o jogo contra o Goiás, a diretoria optou por outra rota. Há quase meio século, o Manchester não teve essa sorte. Em 6 de fevereiro de 58, o bimotor da British Airways em que o time viajava caiu na periferia de Munique, matando 28 pessoas, entre passageiros e moradores da região.
Foi, claro, uma tragédia muito menor do que a de São Paulo, mas tirou a vida de oito jogadores do clube inglês. Na crônica que escrevia na época para a "Manchete Esportiva", Nelson Rodrigues escolheu como "personagem da semana" o atacante Taylor, que estava entre os mortos.
Quase ninguém o conhecia no Brasil, nem o próprio Nelson. Seu feito mais notável, no que nos diz respeito, tinha sido o de marcar dois gols contra a seleção brasileira dois anos antes, no amistoso Inglaterra 4x2 Brasil, em Wembley.
"Mas o tempo passa e eis que Taylor morre", escreve Nelson Rodrigues. "E nós que não o vimos, que não o aplaudimos, nem o vaiamos, sentimos que Taylor deixou de ser um estranho. Sim, a morte deu-lhe a fisionomia exata, a face fidedigna, o ríctus certo. O verdadeiro rosto é o último. O homem da rua, que o ignorava, cochicha para os conhecidos: "O Taylor morreu"."
Vinte e oito mortos em Munique, quase 200 em Congonhas. Mas os números mais escondem do que revelam. Eles anestesiam. Todos os dias dezenas morrem no Iraque, na Índia, no Japão. O difícil é encarar o fim abrupto de uma única vida.
Na ira justa com que questionamos a Infraero, os controladores de vôo, a empresa aérea, o presidente da República e outros pelo acidente em Congonhas, esconde-se o nosso pavor de descobrir, a cada desastre, a fragilidade da nossa condição. "Tudo o que é vivo morre." A frase óbvia e simplória do personagem João Grilo, de "O Auto da Compadecida", é a única certeza que temos sob o sol. Para não sucumbir ao pânico ou ao desalento, a gente se distrai, trabalha, joga bola, namora, ergue prédios, investiga átomo e galáxias, constrói e derruba impérios. Mas, de repente, bate à porta, ou ao telefone, a morte de um amigo.
Bate na tela da TV ou no monitor do computador a morte de cem, de 200 desconhecidos, de 200 Taylors que poderiam ser craques de fim de semana ou pernas-de-pau irremediáveis, empresários corruptos ou donas-de-casa sofridas, meninos-prodígio ou mulheres lindas como a lua. Volto a Nelson Rodrigues, escritor com agudo senso do trágico. Assim termina a sua crônica, incluída no recém-publicado "O Berro Impresso das Manchetes" (editora Agir): "Em Wembley, era um ser em plenitude. Quem se lembraria de lhe soprar ao ouvido: "Você vai morrer, Taylor!'? Os que vão morrer cedo deviam ter uma marca, um distintivo, um estigma material. Mas, como não há esse estigma, a morte de Taylor cobriu o mundo de espanto.".
A coluna está de luto também por Nilo Scalzo, escritor e jornalista que morreu "de morte morrida" três dias antes do desastre da TAM. Devo a ele inestimáveis lições de jornalismo e de vida. Devo-lhe também três amigas queridas, suas filhas: Marília, Fernanda e Mariana. Por hoje é isso.

jgcouto@uol.com.br


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