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JOSÉ GERALDO COUTO
A indesejada das gentes
Ao optar por outro vôo, o Grêmio escapou da tragédia de Congonhas; há meio século, o Manchester não teve essa sorte
A DELEGAÇÃO do Grêmio escapou por pouco, segundo consta, de embarcar no avião da
TAM que caiu em Congonhas. Na
hora de decidir o trajeto da viagem
para o jogo contra o Goiás, a diretoria optou por outra rota. Há quase
meio século, o Manchester não teve
essa sorte. Em 6 de fevereiro de 58, o
bimotor da British Airways em que o
time viajava caiu na periferia de Munique, matando 28 pessoas, entre
passageiros e moradores da região.
Foi, claro, uma tragédia muito
menor do que a de São Paulo, mas tirou a vida de oito jogadores do clube
inglês. Na crônica que escrevia na
época para a "Manchete Esportiva",
Nelson Rodrigues escolheu como
"personagem da semana" o atacante
Taylor, que estava entre os mortos.
Quase ninguém o conhecia no
Brasil, nem o próprio Nelson. Seu
feito mais notável, no que nos diz
respeito, tinha sido o de marcar dois
gols contra a seleção brasileira dois
anos antes, no amistoso Inglaterra
4x2 Brasil, em Wembley.
"Mas o tempo passa e eis que Taylor morre", escreve Nelson Rodrigues. "E nós que não o vimos, que
não o aplaudimos, nem o vaiamos,
sentimos que Taylor deixou de ser
um estranho. Sim, a morte deu-lhe a
fisionomia exata, a face fidedigna, o
ríctus certo. O verdadeiro rosto é o
último. O homem da rua, que o ignorava, cochicha para os conhecidos:
"O Taylor morreu"."
Vinte e oito mortos em Munique,
quase 200 em Congonhas. Mas os
números mais escondem do que revelam. Eles anestesiam. Todos os
dias dezenas morrem no Iraque, na
Índia, no Japão. O difícil é encarar o
fim abrupto de uma única vida.
Na ira justa com que questionamos a Infraero, os controladores de
vôo, a empresa aérea, o presidente
da República e outros pelo acidente
em Congonhas, esconde-se o nosso
pavor de descobrir, a cada desastre,
a fragilidade da nossa condição.
"Tudo o que é vivo morre." A frase
óbvia e simplória do personagem
João Grilo, de "O Auto da Compadecida", é a única certeza que temos
sob o sol. Para não sucumbir ao pânico ou ao desalento, a gente se distrai, trabalha, joga bola, namora, ergue prédios, investiga átomo e galáxias, constrói e derruba impérios.
Mas, de repente, bate à porta, ou
ao telefone, a morte de um amigo.
Bate na tela da TV ou no monitor do
computador a morte de cem, de 200
desconhecidos, de 200 Taylors que
poderiam ser craques de fim de semana ou pernas-de-pau irremediáveis, empresários corruptos ou donas-de-casa sofridas, meninos-prodígio ou mulheres lindas como a lua.
Volto a Nelson Rodrigues, escritor
com agudo senso do trágico. Assim
termina a sua crônica, incluída no
recém-publicado "O Berro Impresso das Manchetes" (editora Agir):
"Em Wembley, era um ser em plenitude. Quem se lembraria de lhe
soprar ao ouvido: "Você vai morrer,
Taylor!'? Os que vão morrer cedo
deviam ter uma marca, um distintivo, um estigma material. Mas, como
não há esse estigma, a morte de Taylor cobriu o mundo de espanto.".
A coluna está de luto também por
Nilo Scalzo, escritor e jornalista que
morreu "de morte morrida" três
dias antes do desastre da TAM. Devo
a ele inestimáveis lições de jornalismo e de vida. Devo-lhe também três
amigas queridas, suas filhas: Marília,
Fernanda e Mariana. Por hoje é isso.
jgcouto@uol.com.br
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