São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2008

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ARTIGO

O mandarim vermelho

Mao Tse-tung, um dos mais duros governantes do século 20, considerava o ser humano uma estatística e, até a morte, foi o maestro da tragédia chinesa

PEDRO DEL PICCHIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A China é o mais antigo regime comunista do mundo. A República Popular da China nasceu em 1949, mas o primeiro Estado comunista autônomo foi criado em novembro de 1931, tendo, como presidente, Mao Tse-tung, previamente escolhido por Stalin. Nascido de uma família camponesa budista em 26 de dezembro de 1893, o presidente Mao participou da fundação do Partido Comunista Chinês (PCC), em 1921, e foi até a morte o maestro da tragédia chinesa.
A China era um império decadente e corrupto, manipulado pelas potências ocidentais no início do século 20, quando surgiram o Kuomintang (Partido Nacionalista), que viria a ser liderado por Chiang Kai-shek, e o Partido Comunista de Mao Tse-tung. Ambos guerrearam entre si, combateram os japoneses e expurgaram os adversários internos, em décadas de perseguições, torturas e fuzilamentos.
Na Segunda Guerra, Stálin patrocinou uma aliança Chiang-Mao para enfrentar o Japão. Mas as forças comunistas e nacionalistas nunca cessaram as escaramuças entre si.
Mao, com menor poder de fogo, mas com maior astúcia, ampliou geograficamente as posições dominadas pelo PCC em território chinês. Após a rendição do Japão, em 1945, bastaram quatro anos para o Exército Vermelho varrer os nacionalistas do continente.
Mao tornou-se, então, um dos mais duros governantes do século 20. As vítimas da revolução chinesa contam-se em dezenas de milhões. Impossível estimar um número exato. Já no início da disputa territorial com o Kuomintang, que teve na Longa Marcha (1934/1935) seu mais conhecido episódio, a selvageria predominou, tanto por parte dos maoístas quanto das tropas de Chiang Kai-shek.
Depois, no período da guerra contra o Japão, a partir de 1937, há relatos impublicáveis de episódios de violência. Mulheres foram torturadas, estupradas e vendidas em mercados de escravos. Soldados foram fuzilados e até enterrados vivos, conforme atestam depoimentos aterradores colhidos pelos historiadores Jung Chang e Jon Halliday (em "Mao - A História Desconhecida", Companhia das Letras). "Foi muito divertido enterrá-los", comenta o participante de um dos massacres.
Nos anos 30, Mao descobriu Edgard Snow, um jornalista norte-americano simpatizante da revolução. Cobriu-o de atenções e informações, transformado-o numa espécie de porta-voz oficioso no Ocidente.
Em "Estrela Vermelha Sobre a China" ("Red Star over China" - Gollacz, Londres, 1973), Snow oferece uma versão extremamente suave e humana da atuação de Mao na Longa Marcha. Conta, por exemplo, com humor, como os combatentes festejavam quando o Grande Timoneiro conseguia superar sua prisão de ventre crônica. Foi a Snow que Mao declarou que "quem conquistar os camponeses conquistará a China" ("La Mia Vita di Giornalista", Einaudi, Turim, 1977).
A ferro e fogo, ele conquistou o apoio dos habitantes miseráveis do campo. Mas, enquanto seus lavradores-soldados marcharam 10 mil quilômetros a pé nas fileiras do Exército Vermelho, Mao Tse-tung, qual um mandarim, cumpriu a maior parte do percurso da Longa Marcha equilibrando-se numa liteira, cercado de livros.
Já no poder, sob o lema "Produção primeiro, a vida em segundo lugar", suas políticas provocaram uma das maiores epidemias de fome da história da humanidade, no início do anos 60. Fala-se em 22 milhões de mortos. Com as "comunas populares", institucionalizou na prática o trabalho forçado no campo. O delírio chegou ao ponto de Mao sugerir (dizem que em termos anedóticos) a substituição dos nomes das pessoas por números.
A seguir, quis criar as "comunas urbanas", abolindo os salários, extinguindo o dinheiro e impondo um sistema de vida em que todos teriam à disposição seis serviços básicos: alimentação, assistência médica, educação, funerais, corte de cabelo e cinema, conforme narra Eric Hobsbawm em a "Era dos Extremos - O Breve Século XX" (Companhia das Letras).
Não deu certo. Num belo dia, ordenou ao povo que fizesse uma algazarra tremenda, não deixando os pardais pousarem em solo chinês, extenuando-os até a morte em vôo. A operação foi um sucesso. Tempos depois, um memorando ultra-secreto chegou à embaixada soviética em Pequim, com a solicitação de 200 mil pardais. Sem os passarinhos no campo, as lavouras foram atacadas por pragas.
Mao considerava o ser humano uma estatística. Durante a Guerra da Coréia (1950/1953), com tropas chinesas combatendo pelo norte e forças dos EUA pelo sul, o general MacArthur quis usar armas nucleares contra os comunistas. A ameaça do general não abalou Mao.
O jornalista Martin Walker (em "The Cold War and the Making of the Modern World", Londres, 1993), reproduzido por Hobsbawm (op.cit.), espantado, diria: "A jovial disposição de Mao de aceitar a inevitabilidade de uma guerra nuclear e sua possível utilidade como um meio de provocar a derrota final do capitalismo deixou tontos seus camaradas de outros países".
E olha que o Grande Timoneiro só conseguiu detonar sua primeira bomba atômica em outubro de 1964, na base de Qinghai, no noroeste do país.
Mao foi um mestre na arte de forjar e desintegrar alianças, externas e internas. Apesar de temer e ao mesmo tempo adular Stálin, soube por conveniência manter-se fiel a ele. Só rompeu com os soviéticos depois da revisão doutrinária de Kruschev. Em casa, perseguiu dezenas de milhares de dirigentes do PCC. Quando pressentia o perigo, lançava mão de estratagemas sofisticados.
Foi assim em 1956/57, na Campanha das Cem Flores, em que conclamou os intelectuais e o povo chinês a deixar "que disputem cem escolas de pensamento". Quem acreditou na liberalização do regime teve de acertar contas, a partir de 1965, com a Revolução Cultural.
Para erradicar a "contra-revolução", convocou o radicalismo de milhões de jovens enraivecidos e ignorantes. Expurgou a velha-guarda comunista. Um dos perseguidos foi Deng Xiaoping, considerado "defensor do capitalismo". Sobreviveu e, por ironia, veio a ser o arquiteto da China moderna.
Esmagada a oposição, Mao convocou o Exército para colocar fim às arruaças da Guarda Vermelha de que tirara proveito. Daí para a frente, apesar de receber Nixon em Pequim, em 1972, a vida de Mao mergulhou numa decadência física irreversível até sua morte, em 9 de setembro de 1976. Antes, cometeu mais uma maldade.
Em 1973, Mao reabilitou Deng Xiaoping, colocando-o de volta na alta hierarquia do PCC. Mas tomou o cuidado de contrapor a ele o "Bando dos Quatro", chefiado por sua esposa Jiang Qing. No confronto, Deng contou com o apoio decisivo de Chu Enlai, o dirigente chinês que por mais tempo ficou ao lado de Mao Tse-tung -de 1921 até morrer, em janeiro de 1976.
Chu Enlai pagou caro por isso. Com câncer, foi proibido por Mao de deixar o governo para se tratar. Alguns historiadores dizem que Mao decidiu castigá-lo ao perceber o apoio a Deng, outros afirmam que o motivo foi mais simplório: o Grande Timoneiro não suportaria a idéia de que Chu o sucedesse no comando. Por uma ou outra razão, foi a última crueldade do mandarim vermelho.


PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor


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