São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Passe livre
Jovens infratores saem da Casa para o campo

Sucessora da Febem, que vê hoje a final de seu torneio interno na preliminar de Paulista x São Paulo, vira celeiro de craques com o trabalho de ressocialização

Com poucas rebeliões e muitas disputas esportivas, fundação assiste a vários casos de superação que inovam o mercado da bola

RODRIGO BUENO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Ele chegava ao treino com uma van na frente e um carro de polícia atrás, algemado. Isso doía na gente. Podia ser meu filho. Meu coração doía de ver a situação dele em relação aos outros meninos, que vinham perguntar o que ele tinha feito."
Ele é João (nome fictício), 18. E quem fala dele é o técnico da equipe júnior da Portuguesa, Eduardo Miranda. Anteontem, o adolescente conseguiu autorização judicial para viajar hoje a Jundiaí e representar a unidade Paulista da Vila Maria da Fundação Casa (ex-Febem) na decisão do torneio que reúne os jovens infratores e que virou agora um celeiro de craques.
A final, na preliminar de Paulista x São Paulo, opõe unidades de reincidentes, uma de Ribeirão Preto e a outra da capital, a última visitada pela Folha na semana passada -pela primeira vez um jornal entrou na outrora temida unidade Paulista.
Comparado a Ronaldinho pela habilidade e ousadia, João é promessa da Portuguesa, onde passa boa parte do tempo livre -de segunda a sexta, precisa dormir em unidade da Casa porque está em semiliberdade.
"Falar que ele parece com o Ronaldinho seria exagero. Ele me lembra muito o Dener, velocista, muita qualidade técnica, menino ousado, não tem medo de cara feira. Por tudo o que passou na vida, vai para cima, tenta jogada bonita. A vontade de vencer desse menino é fora do comum. Por isso, o interesse em ajudá-lo, em dar a oportunidade", diz Miranda.
João tenta alegrar a família por meio do esporte pouco mais de um ano após a morte do irmão mais velho, que também passou pela antiga Febem.
"Minha inspiração é ele. Eu o busco sempre. O lema que eu aprendi com ele é lutar sempre, desistir jamais. Ele não se faz presente. Mas o sonho dele era me ver feliz. Nosso objetivo era ser jogador. Infelizmente, ele não teve esta oportunidade, mas ainda está do meu lado."
O jovem craque só soube que o irmão tinha o vírus HIV após a morte dele. ""Ele foi interno comigo, mas tinha se regenerado também, estava na igreja..."
Hoje, João ganha R$ 400 de ajuda de custo da Portuguesa. E espera assinar em breve seu primeiro contrato profissional.
"A Fundação Casa foi importante porque eu pensava estar em um mundo sem esperança, em um buraco sem saída. As pessoas de lá sempre me apoiaram. Até os companheiros diziam que eu jogava pra caramba, que tinha que escolher isso como profissão", conta João, que quis jogar a final da Copa Casa mesmo já estando em time da elite paulista.
O herói da campanha vitoriosa da unidade Paulista da Vila Maria, porém, é um goleiro: José (nome fictício), 17. Levou só três gols em cinco partidas.
"Faço elétrica, teatro, escultura, outros cursos. Mas estarei agarrando num time profissional qualquer dia. Fui preso pelo tráfico, que só trouxe cadeia para mim. Agora, é jogar minha vida para o esporte", fala José, que impressiona no gol mesmo com só 1,70 m. ""Todo mundo tem uma chance na vida."
"Ele [José] não admite deixar passar nenhuma bola, tem gana. A família dele é bastante complicada. A mãe é alcoólatra. Quando ele era pequeno, a mãe o levava para os sinais. Ele sofria violência doméstica. A assistente social já fez visitas à casa, e a família é muito carente, a mãe não tem estrutura nenhuma. Ela não vem mesmo visitá-lo", conta Fabiana Nunes, psicóloga da unidade Paulista.
Numa das semifinais da Copa Casa, José foi vazado, mas sua equipe fez 3 a 2 na unidade de Marília, equipe do artilheiro e sensação Joaquim (nome fictício), 17, autor de 12 gols em cinco partidas -atuaria na disputa de terceiro lugar ontem.
"Muita gente fala que tenho capacidade, e estou com força de vontade para conseguir alguma coisa. Após o jogo de Presidente Prudente [preliminar de Palmeiras 1 x 1 Corinthians], o pessoal do Palmeiras falou que me levaria para um teste. Pegaram o telefone da unidade para falar com a direção", revela, esperançoso, o camisa 10.
Ele, que já foi sondado pelo Barueri e desperta interesse da Portuguesa, balançou as redes naquele mesmo gol que Ronaldo marcou de cabeça. ""Foi muita emoção. Desde criança tinha o sonho de ser jogador", afirmou o fã de Rogério Ceni.
Primário, Joaquim precisa de autorização judicial, como os demais internos, para sair da unidade e viajar com o time.
"Cobramos muito a disciplina. São meninos que saem e não apresentam problema. Um garoto que passou aqui foi encaminhado para Assis e está bem no futsal. O técnico diz que o Joaquim tem grande talento", fala Edinéia Rodrigues, diretora da unidade Marília.
A confiança nas saídas e viagens dos internos é tão grande que a Fundação Casa tem colocado adolescentes até em corridas de longa distância. E não há registro de fugas nas provas.
"O índice de reincidência na Fundação Casa diminuiu bastante. Em 2003, tínhamos 80 rebeliões por ano. No ano passado, tivemos apenas três. Não só pelo esporte, mas todo o trabalho com os jovens está surtindo efeito. Há uma gama de atividades contribuindo para a ressocialização", fala Carlos Alberto Robles, gerente de educação física e esporte da Casa.
O coordenador e patrono do projeto (a Copa Casa, que está na sua quinta edição, teve 63 equipes) é o ex-lateral Zé Maria, campeão mundial em 1970.
"O trabalho é difícil, mas gratificante. Você pega adolescentes com problemas, mas consegue mudar a mentalidade deles, mudar a direção. O esporte dá disciplina, além de dar oportunidades. Temos conseguido espaço em grandes e pequenos clubes. Todos estão se abrindo para a gente", falou Zé Maria.
O Primeira Camisa, clube de Roque Júnior, acertou com um goleiro, que está em liberdade assistida, de 17 anos e 1,96 m. E o futebol feminino também já abre os olhos para a Casa. Érika, 19, ex-unidade de Parada de Taipas, está no Botucatu, um dos times mais fortes do país.
Mas vencer no futebol pode ser tão difícil quanto vencer na vida. O São Paulo projetou em 2005 Pablo Calfany, ex-interno da Febem que não vingou. O paradeiro dele é desconhecido.


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