|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Passe livre
Jovens infratores saem da Casa para o campo
Sucessora da Febem, que vê hoje a final de seu torneio interno na preliminar de Paulista x São Paulo, vira celeiro de craques com o trabalho de ressocialização
Com poucas rebeliões e muitas disputas esportivas, fundação assiste a vários casos de superação que inovam o mercado da bola
RODRIGO BUENO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Ele chegava ao treino com
uma van na frente e um carro
de polícia atrás, algemado. Isso
doía na gente. Podia ser meu filho. Meu coração doía de ver a
situação dele em relação aos
outros meninos, que vinham
perguntar o que ele tinha feito."
Ele é João (nome fictício), 18.
E quem fala dele é o técnico da
equipe júnior da Portuguesa,
Eduardo Miranda. Anteontem,
o adolescente conseguiu autorização judicial para viajar hoje
a Jundiaí e representar a unidade Paulista da Vila Maria da
Fundação Casa (ex-Febem) na
decisão do torneio que reúne os
jovens infratores e que virou
agora um celeiro de craques.
A final, na preliminar de Paulista x São Paulo, opõe unidades
de reincidentes, uma de Ribeirão Preto e a outra da capital, a
última visitada pela Folha na
semana passada -pela primeira vez um jornal entrou na outrora temida unidade Paulista.
Comparado a Ronaldinho
pela habilidade e ousadia, João
é promessa da Portuguesa, onde passa boa parte do tempo livre -de segunda a sexta, precisa dormir em unidade da Casa
porque está em semiliberdade.
"Falar que ele parece com o
Ronaldinho seria exagero. Ele
me lembra muito o Dener, velocista, muita qualidade técnica, menino ousado, não tem
medo de cara feira. Por tudo o
que passou na vida, vai para cima, tenta jogada bonita. A vontade de vencer desse menino é
fora do comum. Por isso, o interesse em ajudá-lo, em dar a
oportunidade", diz Miranda.
João tenta alegrar a família
por meio do esporte pouco
mais de um ano após a morte
do irmão mais velho, que também passou pela antiga Febem.
"Minha inspiração é ele. Eu o
busco sempre. O lema que eu
aprendi com ele é lutar sempre,
desistir jamais. Ele não se faz
presente. Mas o sonho dele era
me ver feliz. Nosso objetivo era
ser jogador. Infelizmente, ele
não teve esta oportunidade,
mas ainda está do meu lado."
O jovem craque só soube que
o irmão tinha o vírus HIV após
a morte dele. ""Ele foi interno
comigo, mas tinha se regenerado também, estava na igreja..."
Hoje, João ganha R$ 400 de
ajuda de custo da Portuguesa.
E espera assinar em breve seu
primeiro contrato profissional.
"A Fundação Casa foi importante porque eu pensava estar
em um mundo sem esperança,
em um buraco sem saída. As
pessoas de lá sempre me apoiaram. Até os companheiros diziam que eu jogava pra caramba, que tinha que escolher isso
como profissão", conta João,
que quis jogar a final da Copa
Casa mesmo já estando em time da elite paulista.
O herói da campanha vitoriosa da unidade Paulista da Vila Maria, porém, é um goleiro:
José (nome fictício), 17. Levou
só três gols em cinco partidas.
"Faço elétrica, teatro, escultura, outros cursos. Mas estarei
agarrando num time profissional qualquer dia. Fui preso pelo
tráfico, que só trouxe cadeia
para mim. Agora, é jogar minha
vida para o esporte", fala José,
que impressiona no gol mesmo
com só 1,70 m. ""Todo mundo
tem uma chance na vida."
"Ele [José] não admite deixar passar nenhuma bola, tem
gana. A família dele é bastante
complicada. A mãe é alcoólatra.
Quando ele era pequeno, a mãe
o levava para os sinais. Ele sofria violência doméstica. A assistente social já fez visitas à
casa, e a família é muito carente, a mãe não tem estrutura nenhuma. Ela não vem mesmo visitá-lo", conta Fabiana Nunes,
psicóloga da unidade Paulista.
Numa das semifinais da Copa Casa, José foi vazado, mas
sua equipe fez 3 a 2 na unidade
de Marília, equipe do artilheiro
e sensação Joaquim (nome fictício), 17, autor de 12 gols em
cinco partidas -atuaria na disputa de terceiro lugar ontem.
"Muita gente fala que tenho
capacidade, e estou com força
de vontade para conseguir alguma coisa. Após o jogo de Presidente Prudente [preliminar
de Palmeiras 1 x 1 Corinthians],
o pessoal do Palmeiras falou
que me levaria para um teste.
Pegaram o telefone da unidade
para falar com a direção", revela, esperançoso, o camisa 10.
Ele, que já foi sondado pelo
Barueri e desperta interesse da
Portuguesa, balançou as redes
naquele mesmo gol que Ronaldo marcou de cabeça. ""Foi
muita emoção. Desde criança
tinha o sonho de ser jogador",
afirmou o fã de Rogério Ceni.
Primário, Joaquim precisa
de autorização judicial, como
os demais internos, para sair da
unidade e viajar com o time.
"Cobramos muito a disciplina. São meninos que saem e
não apresentam problema. Um
garoto que passou aqui foi encaminhado para Assis e está
bem no futsal. O técnico diz
que o Joaquim tem grande talento", fala Edinéia Rodrigues,
diretora da unidade Marília.
A confiança nas saídas e viagens dos internos é tão grande
que a Fundação Casa tem colocado adolescentes até em corridas de longa distância. E não há
registro de fugas nas provas.
"O índice de reincidência na
Fundação Casa diminuiu bastante. Em 2003, tínhamos 80
rebeliões por ano. No ano passado, tivemos apenas três. Não
só pelo esporte, mas todo o trabalho com os jovens está surtindo efeito. Há uma gama de
atividades contribuindo para a
ressocialização", fala Carlos Alberto Robles, gerente de educação física e esporte da Casa.
O coordenador e patrono do
projeto (a Copa Casa, que está
na sua quinta edição, teve 63
equipes) é o ex-lateral Zé Maria, campeão mundial em 1970.
"O trabalho é difícil, mas gratificante. Você pega adolescentes com problemas, mas consegue mudar a mentalidade deles, mudar a direção. O esporte
dá disciplina, além de dar oportunidades. Temos conseguido
espaço em grandes e pequenos
clubes. Todos estão se abrindo
para a gente", falou Zé Maria.
O Primeira Camisa, clube de
Roque Júnior, acertou com um
goleiro, que está em liberdade
assistida, de 17 anos e 1,96 m. E
o futebol feminino também já
abre os olhos para a Casa. Érika, 19, ex-unidade de Parada de
Taipas, está no Botucatu, um
dos times mais fortes do país.
Mas vencer no futebol pode
ser tão difícil quanto vencer na
vida. O São Paulo projetou em
2005 Pablo Calfany, ex-interno
da Febem que não vingou. O
paradeiro dele é desconhecido.
Texto Anterior: Cubano cai na luta pelo maior título dos pesados Próximo Texto: Frases Índice
|