São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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FUTEBOL

Lances de invenção

CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nem Rivaldo, nem Ronaldo, nem Ronaldinho. De nenhum dos três craques nem de Kaká, a mais possível nova grande estrela verde-amarela, partiu ontem um lance inventivo que se esperasse, como normalmente se espera, da seleção. Mas, se não vimos jogadas desse tipo no amistoso de comemoração do penta contra o Paraguai, elas não têm faltado no atual Campeonato Brasileiro, criadas por outro jogador fora-de-série e, há tempos, fora da seleção. Adivinhe quem... e confira seu nome nas notas desta coluna (dou-lhe uma; dou-lhe duas; dou-lhe três). Ele segue sendo um verdadeiro artista da bola.
"Arte é uma coisa alegre", disse o músico-poeta americano de vanguarda John Cage. "Uma coisa bela é uma alegria para sempre", escreveu o poeta romântico inglês John Keats. O que tem isso a ver com o futebol? Tem muito. Particularmente com o brasileiro, aquele que, conjugando beleza e alegria, foi denominado futebol-arte, opondo-se ao futebol-força.
Pasolini, o cineasta e escritor italiano, associou o futebol do nosso país à poesia, e o do seu país à prosa (realista). A poesia é a mais artística das linguagens verbais, e a prosa, a mais prosaica...
O poeta americano Ezra Pound considerava a poesia tão diferente da prosa que, para ele, poesia não era literatura, mas uma arte mais próxima da música e da dança. Um futebol-poesia não seria então aquele em que seus praticantes jogam com ginga, como na capoeira? E não seria este, afinal, o futebol-samba, como a imprensa cunhou liricamente o da seleção no Mundial?
Quando uma prosa tem uma linguagem caracterizada pela inventividade, costuma-se associá-la à poesia, como se deu com a prosa de um Guimarães Rosa, de um Mário de Andrade, de um Oswald de Andrade. Este chegou a criar, para um livro seu, a classificação "romance de invenção". Parafraseando Oswald, há também no futebol o que podemos chamar de "lances de invenção".
São aqueles, surpreendentes, que inauguram um procedimento ou se constituem numa variação muito particular, imprevista, de um. Depois de lançadas, são são repetidos por outros atletas, às vezes até com mais maestria.
O chute de Pelé do meio de campo no jogo contra a Tchecoslováquia na Copa de 70, por exemplo. Quantas vezes já não vimos isso ocorrer de novo, algumas até terminando em gol?
Garrincha, Pelé, Rivellino, Zico, Maradona foram exímios criadores de lances de invenção. E nem é preciso eles terminarem em gol para se tornarem memoráveis. Como esquecer aquele em que Pelé passa por cima da bola à frente do goleiro do Uruguai, o rodeia e vai buscá-la atrás dele? "Emoção que perdura": eis como, a propósito, Pound definiu poesia.
Para terminar, duas dessas "alegrias para sempre" que puderam ser vividas em 2002. A primeira: jogando pelo Barcelona, Rivaldo recebe na entrada direita da área um lançamento forte pelo alto e, sem que possamos acreditar no que de fato vemos, ele amacia a bola no pé direito para então finalizar para as redes com o esquerdo. Outra: o gol que Ronaldinho faz de falta contra a Inglaterra, como que citando (ou recitando...) a folha-seca (a invenção) de Didi, como me sugeriu o compositor, escritor e professor José Miguel Wisnik (Zé que, agora, trabalha numa obra literária tratando sobre o futebol-arte).

Dou-lhe 1
Na estréia em seu novo time, ele fez dois gols contra o Cruzeiro. No segundo, depois de passar a bola na intermediária e correr para recebê-la já quase na pequena área, chutou de biquinho, deslocando completamente o goleiro.

Dou-lhe 2
No último sábado, deu um passe difícil para o primeiro gol e fez os dois outros contra o Grêmio. O segundo, após toque desconcertante no zagueiro -foi um dos mais lindos da competição até aqui. E o terceiro, cabeceando entre cinco adversários.

Dou-lhe 3
Ele é Romário, claro. Aos 36 anos, o centroavante do Fluminense é a maior sensação do Brasileiro. Quanto aos lances de invenção, ele é autor de um simplesmente memorável: o feito (ou seria melhor dizer "inventado"?) contra a Holanda, na Copa-94.

E-mail esporte@uol.com.br


Tostão, em férias, volta escrever nesta coluna no dia 4 de setembro.



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