São Paulo, sexta-feira, 22 de agosto de 2008

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ARTIGO

A ascensão da China vai além dos ouros

O país vai deixar rastros igualmente espantosos nas artes, nos negócios, nas ciências e na educação

NICHOLAS D. KRISTOF
DO "NEW YORK TIMES", EM PEQUIM

A China está a caminho de tomar o lugar dos EUA como país vencedor do maior número de medalhas de ouro nesta Olimpíada. É bom nos acostumarmos com isso.
Hoje é a grande ascensão nos esportes que nos deixa estarrecidos, mas a China vai deixar rastros igualmente espantosos nas artes, nos negócios, nas ciências e na educação.
O mundo com o qual estamos familiarizados, dominado por EUA e Europa, é uma anomalia histórica. Até o início do século 15, as maiores economias do mundo eram a China e a Índia, e as pessoas que traçavam previsões na época podem ter presumido que esses países seriam os que iriam colonizar as Américas -o que significaria que este jornal seria impresso em chinês e possivelmente em hindi.
Mas, então, China e Índia começaram a se fragmentar, ao mesmo tempo em que se iniciava a ascensão da Europa. Levada em conta a inflação, a renda per capita chinesa era mais baixa na década de 1950 do que tinha sido no final da dinastia Song, nos anos 1270.
Hoje o mundo está voltando ao seu estado normal -uma Ásia poderosa-, e nós teremos que nos adaptar, simplesmente. Assim como muitos americanos conhecem seus vinhos tintos e facilmente distinguem um Manet de um Monet, nossos filhos se tornarão conhecedores do chá pu-er e conhecerão a diferença entre "guanxi" e Guangxi, entre Qin e Qing.
Quando estiveram irritados, talvez xinguem uns aos outros de "ovos de tartaruga".
Durante a ascensão do Ocidente, a cultura chinesa teve que se adaptar constantemente. Quando os primeiros ocidentais chegaram à China, levando consigo a fé na Virgem Maria, a China não possuía uma figura feminina equivalente para operar milagres -então Guan Yin, o deus da compaixão, passou por uma transformação sexual e tornou-se a deusa da compaixão.
Agora será nossa vez de nos esforçarmos para competir com uma Ásia em ascensão.
Essa transição para uma hegemonia chinesa será um processo difícil para toda a comunidade internacional, mais ainda em função do espinhoso nacionalismo chinês.
A China ainda vê o mundo através do prisma da "guochi", ou humilhação nacional, e, entre alguns chineses jovens, o sucesso às vezes parece gerar não tanto autoconfiança nacional quanto arrogância.
As agências de inteligência chinesas estão ficando mais agressivas quando miram a América, incluindo seus segredos corporativos. E as Forças Armadas chinesas estão financiando novos esforços para minar a preeminência militar dos EUA, esforços esses que incluem armas espaciais, ciberguerra e tecnologias para ameaçar os grupos de porta-aviões americanos.
O presidente Bush foi intensamente criticado por comparecer à Olimpíada de Pequim, mas, olhando em retrospectiva, acho que ele teve razão em fazê-lo. A mais importante relação bilateral do mundo nos próximos anos será entre China e EUA, e Bush conquistou enorme boa vontade da população chinesa por comparecer.
Tendo conquistado esse capital político, porém, Bush não o usou. Ele deveria ter feito uma defesa mais contundente dos direitos humanos, inclusive exortando Pequim a parar de vender as armas usadas para o genocídio em Darfur.
É um equilíbrio difícil de acertar, mas a determinação da China em liderar na contagem de medalhas de ouro -e seus esforços avassaladores para encontrar e treinar os melhores atletas- revelam um desejo maior por respeito e legitimidade internacionais. Podemos usar esse desejo também para envergonhar os líderes chineses e induzi-los a comportamentos melhores.
Quando o governo chinês condena duas mulheres frágeis de mais de 70 anos a trabalhos forçados porque solicitaram autorização para fazer um protesto legal durante a Olimpíada, como ele acaba de fazer, isso é um ultraje ao qual é preciso reagir não com "diplomacia silenciosa", mas chamando a atenção para o fato.
Devemos também reconhecer que pressões informais estão ganhando importância crescente. A figura mais importante nas relações China-EUA, hoje, não é o embaixador de um ou do outro país; é o jogador de basquete Yao Ming -e David Stern, o comissário da NBA, é a segunda. A maior força em favor da democratização não é o G7 (grupo de países mais industrializados): são os milhões de chineses que estudam no Ocidente e retornam a seu país, às vezes munidos de "green cards" ou passaportes azuis, mas sempre carregando expectativas maiores de liberdade.
A ascensão da China é apoiada em parte pela maneira como o Partido Comunista vem se adaptando -a contragosto, e às vezes de maneira incompetente- a essas pressões em favor das mudanças.
Nesta minha visita ao país, passei pela casa de Bao Tong, ex-funcionário do Partido Comunista que passou sete anos na prisão por ter desafiado os representantes da linha dura durante o movimento pró-democracia de Tienanmen. Os guardas que o vigiam 24 horas por dia, sete dias por semana, me deixaram passar quando mostrei minha credencial de imprensa da Olimpíada.
Bao observou que, antigamente, os líderes comunistas realmente acreditavam no comunismo; hoje eles acreditam simplesmente no governo do Partido Comunista. Ele recordou que os líderes da linha dura se preocupavam com o perigo da "evolução pacífica", ou seja, uma mudança gradual para um sistema político e econômico de estilo ocidental. "Hoje, o que temos de fato é a evolução pacífica", ele apontou.
Essa flexibilidade é uma das grandes forças da China. E é uma razão pela qual a coisa mais importante que está acontecendo no mundo hoje é a ascensão da China -na Olimpíada e em quase todas as outras facetas da vida.


Tradução de Clara Allain


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