São Paulo, sábado, 22 de agosto de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

Entre o caos e a assepsia


A reforma do Maracanã faz pensar nas relações entre os estádios de futebol e a sociedade brasileira


LEIO NO site da Justiça Desportiva que ao final do Brasileirão, em dezembro, o Maracanã será fechado para reformas com vista à Copa de 2014. Durante o ano de 2010, o estádio permanecerá interditado, e os cariocas terão de se habituar a ver os jogos de seus times no Engenhão.
Imaginar o Rio sem o Maracanã é quase como imaginá-lo sem o Pão de Açúcar. Um dos templos mais venerados do futebol mundial, o estádio Mário Filho correu há alguns anos, no entanto, o risco de ser demolido e substituído por uma dessas famigeradas "arenas multiuso". A ideia partiu de ninguém menos do que o presidente da CBF, Ricardo Teixeira. Ainda bem que não vingou.
Quem já esteve no Maracanã lotado sabe que a energia que emana dali é da ordem do sagrado, como a das tragédias gregas e dos rituais dionisíacos.
Algum dia talvez se chegue à conclusão friamente racional de que o Maracanã é irreformável, de que seu destino inexorável é o mesmo do mítico estádio de Wembley, demolido e substituído por outro, supermoderno. Os mais nostálgicos verterão uma lágrima, mas o mundo seguirá em frente rumo à funcionalidade asséptica e impessoal dos espaços de convivência humana.
A conversão dos velhos estádios em "arenas multiuso" é análoga à substituição dos antigos mercados públicos pelos modernos shopping centers e hipermercados com ar refrigerado.
O universo caótico, colorido, ruidoso, frequentemente sujo e malcheiroso dos mercados e feiras livres dá lugar a mundinhos limpos, perfumados, controlados por câmeras de vídeo e sedados por uma anódina música ambiente. Ganha-se em segurança, em higiene e em eficiência, perde-se em calor humano, em experiência vital. O mesmo acontece com os estádios.
O debate veio à tona com força alguns anos atrás, quando o Maracanã foi reformado e perdeu sua antiga "geral", destinada aos torcedores de menor poder aquisitivo. A arraia miúda, em suma, que se sujeitava a ficar em pé, com o rosto pouco acima do nível do campo, para ver seu time jogar.
Os que defendiam a manutenção da geral alegavam que seus ocupantes, com seu modo pitoresco de torcer e de festejar, faziam parte do espetáculo. Havia um ranço populista nessa visão, que folclorizava aqueles desdentados, de radinho de pilha grudado na orelha, que nos habituamos a ver na tela do "Canal 100".
Os adeptos da reforma rebatiam dizendo que eram desumanas as condições a que os frequentadores da geral se submetiam. Tinham razão, claro, e acabaram vencendo.
Ninguém se lembrou de perguntar o que os "geraldinos" pensavam do assunto. Esqueceu-se também de que os supostos flagelados da geral não eram forçados a estar lá. Preferiam ver os jogos naquelas condições a não ver jogo nenhum, que é o que acontece hoje, já que a antiga geral virou um setor nobre e caro.
Não tenho uma opinião definitiva, mas desconfio que pensar sobre essas questões é pensar sobre o país que desejamos: uma arena confortável e moderna para uns poucos ou um velho estádio avacalhado no qual todos se espremem. Não haverá uma terceira via?

jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: Outro lado: Entidade vai averiguar questão
Próximo Texto: Copa dos Campeões: Torneio dribla crise e divulga receita recorde
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.