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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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FUTEBOL

Conversa de botequim

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns leitores me falam que gostam mais de minhas crônicas em que não escrevo sobre futebol. Outros, ao contrário, preferem as minhas análises técnicas e táticas. Há ainda os que apreciam as duas abordagens e os que não gostam do que escrevo, mas não deixam de ler para criticar e questionar.
Aprendo com as críticas, desde que elas não sejam apenas de torcedores parciais. Interessante é que há um grupo de torcedores que são excessivamente duros com os jogadores e com o seu time, mas que não aceitam as mesmas críticas de comentaristas. Acham que queremos menosprezar o seu clube de coração.
Quando era professor de medicina, tentava, obsessivamente, ser amplamente compreendido pelos alunos. Durante algum tempo, transportei essa ansiedade para minhas crônicas. Hoje, sei que isso é impossível. As pessoas entendem do jeito que desejam, de acordo com seus conhecimentos e referências. Esse é um dos problemas da comunicação humana.
Aprendi também durante o curso de psicanálise, na minha análise e, principalmente, na vida, a respeitar as diferenças, a olhar para todos os lados e não apenas para o meu umbigo e a conhecer e conviver com as minhas fraquezas e limitações. Aprendi ainda o óbvio, que um dos maiores desejos de homens e de mulheres é ser reconhecido. Precisamos da aprovação e do olhar do outro.
Não sei por que falo dessas coisas. Parece conversa de botequim. A consciência me avisa de que tenho de escrever sobre futebol.
Gostaria de ver o futebol apenas com o olhar de um poeta, para apreciar a beleza do espetáculo, sem preocupações técnicas. É como faço, de vez em quando, ao escutar uma melodia com os olhos fechados. Sentir, sem entender. Gostar, sem pensar. Sou um homem romântico.
Porém sou também um homem pragmático, racional, metido a entender de futebol e que tem prazer em analisar e transmitir os detalhes técnicos e táticos de uma partida. A função de comentarista é também a continuação da minha vida de professor.
Parece que algumas pessoas acham que o comentário técnico é uma coisa chata, pouco intelectual, menor. Estranho! Como se fôssemos obrigados a escolher entre a beleza, o espetáculo e a técnica. Com raras exceções, não existe arte sem técnica.
O mesmo acontece na vida. Temos sempre de optar entre a razão e a paixão, o corpo e a alma, o socialismo ou o capitalismo, o otimismo ou o pessimismo e dezenas de outras escolhas. Não há meio-termo. Como se a vida se passasse nos extremos. Essa dicotomia é uma das causas do sofrimento humano. O corpo deseja uma coisa, e a alma, outra.
No início do futebol só era importante a habilidade, a descontração e a improvisação. Era uma gostosa brincadeira, sem professor para atrapalhar.
A seleção brasileira campeã do mundo em 1970, ao mesmo tempo em que encantou o mundo com o talento de seus jogadores, foi um marco na preparação científica e moderna. A partir desse momento, houve uma supervalorização da parte tática, física, do conjunto, em detrimento da individualidade, da improvisação e da beleza do espetáculo.
Os técnicos científicos tomaram conta do futebol. Passaram a ser as estrelas do espetáculo. Estudavam muito e pensavam pouco. Criaram regras e dogmas. Eles queriam transportar essas "verdades" para todas as partidas. Queriam levar o jogo para o livro e não usar o conhecimento para entender a partida. Cada jogo tem a sua história.
O futebol ficou feio, chato e ineficiente. Felizmente, há muitos anos, isso está mudando. Muitos treinadores estão tentando associar a beleza com a técnica, o individual com o coletivo, o espetáculo com a eficiência, a improvisação com a disciplina tática. É o que penso e defendo desde a época de jogador.
Preciso terminar esta coluna e não sei como. É um lugar-comum, mas vou citar as palavras de um grande pensador. Da mesma forma como os craques são os personagens mais importantes do futebol, os poetas são muito mais sábios do que a ciência.
"Depois de algum tempo, você aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar atrás. Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar que alguém lhe traga flores." (William Shakespeare)

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