São Paulo, sábado, 24 de maio de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Coração iluminado

Ao marcar dois gols cruciais, o renascido Washington produziu um instante de plenitude no Maracanã

NOVES FORA, só sobrou o Fluminense. Entre os clubes brasileiros que disputavam a Libertadores da América, era o que tinha menos tradição no torneio.
Agora está na semifinal. Caíram no caminho ex-campeões continentais como o São Paulo, o Santos, o Flamengo e o Cruzeiro. Não vou cometer a bobagem de dizer que "agora o Flu é o Brasil na Libertadores", mas eu, pelo menos, vou torcer muito pelo tricolor.
A vitória sobre o São Paulo, na quarta-feira, no Maracanã, foi uma dessas noites épicas e inesquecíveis com que o futebol às vezes nos brinda. O gol redentor, na undécima hora, produziu a reedição de uma das imagens mais lindas que existem no mundo: o Maracanã em festa.
E entre todas as belas cenas da noite, a mais comovente foi talvez o demorado abraço entre o artilheiro Washington e o técnico Renato Gaúcho no centro do gramado. Dois marmanjos chorando de alegria e reconhecimento um no ombro do outro. Washington, que não fazia gols havia oito jogos, fez logo dois no momento decisivo. "Sou um iluminado", disse ele, em lágrimas, depois da vitória. E é mesmo.
Para quem não se lembra, Wa- shington quase abandonou o futebol em 2003, quando jogava pelo Fenerbahce, da Turquia, e teve diagnosticado um sério problema cardíaco. Washington passou por uma cirurgia delicada e voltou aos campos em 2004 para ser o maior artilheiro de um Campeonato Brasileiro, com 34 gols, atuando pelo Atlético Paranaense, vice-campeão do torneio.
Aquela foi a primeira ressurreição do goleador, que depois disso ainda seria artilheiro e campeão japonês, em 2006, pelo Urawa Reds.
Aos 33 anos, depois de tudo o que fez, bem que Washington poderia estar caminhando para uma serena aposentadoria. Com certeza sua família ficaria feliz com isso. Seria a coisa certa a fazer. Mas, como cantou Caetano Veloso pela boca de Roberto Carlos, a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o Sol -ou sob a Lua, como é o caso do redivivo Washington. O momento de felicidade que ele viveu e produziu na quarta-feira no Maracanã é mais valioso do que qualquer plano de aposentadoria.
O coração já vitimou jogadores (quem não se lembra de Serginho, do São Caetano, morto em campo aos 30 anos?) e torcedores mundo afora. Causou interrupções na carreira de craques como o são-paulino Roberto Dias e o nigeriano Kanu, que, no entanto, como Washington, voltaram aos gramados para brilhar.
Certa vez, ao ouvir Vinícius de Moraes cantar suas canções de amor, o poeta João Cabral de Melo Neto lhe perguntou, com sarcasmo: "Você não tem outra víscera para cantar, não?". Claro que tinha, mas nenhuma encarnaria com tanta perfeição a potência e ao mesmo tempo a fragilidade da vida. O coração, como a paixão, é instável, traiçoeiro, faz sofrer. Daí as imagens queixosas tão recorrentes na poesia e na canção popular: "coração leviano", "ingrato", "vagabundo".
Às vezes ele parece jogar contra a gente. Em compensação, às vezes nos leva à plenitude e ao gozo, como em uma noite de festa no maior estádio do mundo. Isso é algo que não aprendemos, mas sabemos de cor, ou seja, de "cuore", de coração.


jgcouto@uol.com.br

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