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JOSÉ GERALDO COUTO
Coração iluminado
Ao marcar dois gols cruciais, o renascido Washington produziu um instante de plenitude no Maracanã
NOVES FORA, só sobrou o Fluminense. Entre os clubes
brasileiros que disputavam a
Libertadores da América, era o que
tinha menos tradição no torneio.
Agora está na semifinal. Caíram no
caminho ex-campeões continentais
como o São Paulo, o Santos, o Flamengo e o Cruzeiro.
Não vou cometer a bobagem de dizer que "agora o Flu é o Brasil na Libertadores", mas eu, pelo menos,
vou torcer muito pelo tricolor.
A vitória sobre o São Paulo, na
quarta-feira, no Maracanã, foi uma
dessas noites épicas e inesquecíveis
com que o futebol às vezes nos brinda. O gol redentor, na undécima hora, produziu a reedição de uma das
imagens mais lindas que existem no
mundo: o Maracanã em festa.
E entre todas as belas cenas da
noite, a mais comovente foi talvez o
demorado abraço entre o artilheiro
Washington e o técnico Renato
Gaúcho no centro do gramado. Dois
marmanjos chorando de alegria e
reconhecimento um no ombro do
outro. Washington, que não fazia
gols havia oito jogos, fez logo dois no
momento decisivo. "Sou um iluminado", disse ele, em lágrimas, depois
da vitória. E é mesmo.
Para quem não se lembra, Wa-
shington quase abandonou o futebol
em 2003, quando jogava pelo Fenerbahce, da Turquia, e teve diagnosticado um sério problema cardíaco.
Washington passou por uma cirurgia delicada e voltou aos campos
em 2004 para ser o maior artilheiro
de um Campeonato Brasileiro, com
34 gols, atuando pelo Atlético Paranaense, vice-campeão do torneio.
Aquela foi a primeira ressurreição
do goleador, que depois disso ainda
seria artilheiro e campeão japonês,
em 2006, pelo Urawa Reds.
Aos 33 anos, depois de tudo o que
fez, bem que Washington poderia
estar caminhando para uma serena
aposentadoria. Com certeza sua família ficaria feliz com isso. Seria a
coisa certa a fazer. Mas, como cantou Caetano Veloso pela boca de Roberto Carlos, a coisa mais certa de
todas as coisas não vale um caminho
sob o Sol -ou sob a Lua, como é o caso do redivivo Washington. O momento de felicidade que ele viveu e
produziu na quarta-feira no Maracanã é mais valioso do que qualquer
plano de aposentadoria.
O coração já vitimou jogadores
(quem não se lembra de Serginho,
do São Caetano, morto em campo
aos 30 anos?) e torcedores mundo
afora. Causou interrupções na carreira de craques como o são-paulino
Roberto Dias e o nigeriano Kanu,
que, no entanto, como Washington,
voltaram aos gramados para brilhar.
Certa vez, ao ouvir Vinícius de
Moraes cantar suas canções de
amor, o poeta João Cabral de Melo
Neto lhe perguntou, com sarcasmo:
"Você não tem outra víscera para
cantar, não?". Claro que tinha, mas
nenhuma encarnaria com tanta perfeição a potência e ao mesmo tempo
a fragilidade da vida. O coração, como a paixão, é instável, traiçoeiro,
faz sofrer. Daí as imagens queixosas
tão recorrentes na poesia e na canção popular: "coração leviano", "ingrato", "vagabundo".
Às vezes ele parece jogar contra a
gente. Em compensação, às vezes
nos leva à plenitude e ao gozo, como
em uma noite de festa no maior estádio do mundo. Isso é algo que não
aprendemos, mas sabemos de cor,
ou seja, de "cuore", de coração.
jgcouto@uol.com.br
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