|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Vida de visitante
Para ver seu time longe de casa, torcedor não se exibe, enfrenta hostilidade , obedece ordens, perde-se e não enxerga jogos
RODRIGO MATTOS
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE
E A PORTO ALEGRE
O torcedor visitante de time de futebol é, antes de tudo, um forte. Não se rende à
obviedade da camisa da
maioria do estádio.
A sua aparência, entretanto, no primeiro lance de vista, revela o contrário. É deslocado, cauteloso, esquivo. É o
homem que está permanentemente com receio.
A adaptação das frases de
Euclides da Cunha no clássico "Os Sertões", que descrevem o sertanejo nordestino,
explica o que é torcer por seu
time em outro Estado.
Não é fácil, logo de cara,
achar um torcedor visitante.
Está retido em uma rua lateral escoltado pela polícia,
como os corintianos que foram ao Olímpico ver seu time
pegar o Grêmio, no Nacional.
Está com casaco sobre a
camisa são-paulina como os
que foram assistir ao jogo
contra o Cruzeiro, no Mineirão, pela Libertadores.
Ser torcedor visitante é evitar se exibir fora do estádio.
"Fui comprar ingresso e
sussurrei à bilheteira: "É para
o setor do São Paulo". Ela falou alto: "São Paulo?". Todos
os cruzeirenses olharam para
mim", conta o engenheiro
são-paulino Raul Camargo,
28, já refeito do susto.
Ser torcedor visitante é respeitar alianças que, provavelmente, ele não negociou.
As organizadas dos diferentes Estados estabelecem
conexões entre si, o que gera
paz ou hostilidade no jogo.
Fora do estádio, cruzeirenses e são-paulinos das uniformizadas Máfia Azul e Independente confraternizam-se antes do jogo da Libertadores. Fotos, gritos e um
churrasco os unem.
"Contra o Cruzeiro não tenho receio, mas com o Atlético-MG o clima é mais tenso",
explica o estudante são-paulino Gustavo Henrique, 21.
Torcedores do time alvinegro compõem outra aliança,
que inclui os palmeirenses.
Ser torcedor visitante,
principalmente de organizadas, é estar atento aos Estados mais perigosos.
Membros das uniformizadas classificam o Rio de Janeiro como o lugar menos seguro para ir a jogos.
"No Rio é pior porque são
várias torcidas e pela polícia,
que não contribui para evitar
o conflito", declara o estudante Rodrigo Rosa da Cruz,
24, da Independente.
O Paraná também é visto
como um local complicado,
com polícia truculenta.
As organizadas costumam
ser escoltadas das entradas
da cidade-sede do jogo até os
estádios. Nem sempre funciona. Ônibus de corintianos
eram desconhecidos por policiais gaúchos no Olímpico.
Ser torcedor visitante é
viajar muito, não saber o caminho e não ter certeza de como será o final da jornada.
"Meu maior perrengue foi
quando viajei sem dinheiro
nem para comer, nem para o
ingresso em um jogo contra o
Flamengo, em 2003. Os amigos fortaleceram [ajudaram]", lembra o vendedor
Fernando de Assis, 32, membro da Gaviões da Fiel.
Um grupo de maquinistas
são-paulinos tem cara de sono no Mineirão. Sua ida a Belo Horizonte foi de carro,
saindo de Mogi das Cruzes
após um turno noturno. "A
gente dirige sem saber onde
está indo e no estádio não
tem orientação", protesta
Valmir Pereira, 28.
Ser torcedor visitante é esperar e respeitar ordens.
"Vir a um jogo do Corinthians é programa para o dia
inteiro", lamenta o autônomo Carlos Airton, 29,
gaúcho de Livramento.
Ao chegar ao Olímpico, todos os corintianos
são levados para uma rua lateral e postos atrás de uma
corda por horas. São tocados
como gado. Um policial até
empurra, de leve, o repórter.
A revista é mais rigorosa
que em aeroportos internacionais e inclui a retirada de
sapatos. Mulheres e crianças
também são vistoriadas.
Sob orientação de um policial, educado e agindo como
um chefe de excursão, todos
se dirigem à porta do estádio
por um corredor da PM. A torcida do Grêmio tenta provocar e é empurrada por policiais a cavalos para um bar.
Ser torcedor visitante é ficar constrangido com gritos
de sua própria torcida.
Ao entrar no Olímpico, os
corintianos fazem ironias aos
gaúchos. Só que metade dos
alvinegros é nascida no Sul.
"Aí não gostei", reclamou
Gabriel Siccardi, 27, ao ouvir
um dos gritos. "Mas, quando
estou na torcida do Corinthians, não me sinto minoria", declarou, depois.
Em Minas, um torcedor,
com uniforme de uma organizada do Cruzeiro em meio
aos são-paulinos, franze o
rosto, contrariado, quando
todos xingam seu time.
Ser torcedor visitante é se
contorcer para assistir ao jogo e se sentir recluso.
O Mineirão tem oito placas
de concreto na parte superior
da visão dos são-paulinos.
Como todos ficam em pé, em
metade das cadeiras é preciso curvar as costas para conseguir ver todo o gramado.
O Olímpico tem grades
pontiagudas nas laterais e
ferros múltiplos nas extremidades. É como um presídio.
O placar de Minas exibe
gols antigos do Cruzeiro contra o São Paulo. No Sul, só
festeja gols dos gremistas.
Ser torcedor visitante é saber que há uma possibilidade de não assistir ao jogo.
É comum organizadas serem retidas pela polícia no
caminho. Às vezes, entram
só para o segundo tempo. Em
outras, nem isso é possível.
No Sul, um ônibus da corintiana Estopim da Fiel é detido para revistas na entrada
da cidade. Só chega ao Olímpico quando faltam dez minutos para acabar o jogo contra o Grêmio. Ainda assim,
seus membros não são autorizados a entrar no estádio.
Só dois deles podem levar
as faixas para amarrar na
arena. Entram correndo, fazem seu serviço e, quando
olham para o campo, o juiz
apita o final da partida.
"Não sei nem quem jogou.
Acabou 2 a 0?", pergunta o
estudante Isac Vilela, 16. "Isso acontece em outros lugares." Ele e seus companheiros tinham viajado 20 horas
para ir a Porto Alegre.
Ser torcedor visitante é,
ainda, festejar em minoria.
Nos dois jogos acompanhados pela Folha na torcida não local, o São Paulo bateu o Cruzeiro (2 a 0), e o Corinthians, o Grêmio (2 a 1).
Só se ouviam as torcidas
paulistas ao final das partidas, diante de quase 50 mil
cruzeirenses e quase 20 mil
gremistas. O goleiro Rogério
foi aplaudir os são-paulinos.
Em nova analogia com o
sertanejo de Euclides da Cunha, pode-se dizer do torcedor visitante que a sua aparência de fragilidade ilude.
Reponta, inesperadamente,
o aspecto dominador de um
titã, cuja força cala a maioria.
Texto Anterior: Mano Menezes admite futebol pobre do time Próximo Texto: Frase Índice
|