São Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 2010

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Vida de visitante

Para ver seu time longe de casa, torcedor não se exibe, enfrenta hostilidade , obedece ordens, perde-se e não enxerga jogos

RODRIGO MATTOS
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE E A PORTO ALEGRE

O torcedor visitante de time de futebol é, antes de tudo, um forte. Não se rende à obviedade da camisa da maioria do estádio.
A sua aparência, entretanto, no primeiro lance de vista, revela o contrário. É deslocado, cauteloso, esquivo. É o homem que está permanentemente com receio.
A adaptação das frases de Euclides da Cunha no clássico "Os Sertões", que descrevem o sertanejo nordestino, explica o que é torcer por seu time em outro Estado.
Não é fácil, logo de cara, achar um torcedor visitante.
Está retido em uma rua lateral escoltado pela polícia, como os corintianos que foram ao Olímpico ver seu time pegar o Grêmio, no Nacional.
Está com casaco sobre a camisa são-paulina como os que foram assistir ao jogo contra o Cruzeiro, no Mineirão, pela Libertadores.
Ser torcedor visitante é evitar se exibir fora do estádio.
"Fui comprar ingresso e sussurrei à bilheteira: "É para o setor do São Paulo". Ela falou alto: "São Paulo?". Todos os cruzeirenses olharam para mim", conta o engenheiro são-paulino Raul Camargo, 28, já refeito do susto.
Ser torcedor visitante é respeitar alianças que, provavelmente, ele não negociou.
As organizadas dos diferentes Estados estabelecem conexões entre si, o que gera paz ou hostilidade no jogo.
Fora do estádio, cruzeirenses e são-paulinos das uniformizadas Máfia Azul e Independente confraternizam-se antes do jogo da Libertadores. Fotos, gritos e um churrasco os unem.
"Contra o Cruzeiro não tenho receio, mas com o Atlético-MG o clima é mais tenso", explica o estudante são-paulino Gustavo Henrique, 21.
Torcedores do time alvinegro compõem outra aliança, que inclui os palmeirenses.
Ser torcedor visitante, principalmente de organizadas, é estar atento aos Estados mais perigosos.
Membros das uniformizadas classificam o Rio de Janeiro como o lugar menos seguro para ir a jogos.
"No Rio é pior porque são várias torcidas e pela polícia, que não contribui para evitar o conflito", declara o estudante Rodrigo Rosa da Cruz, 24, da Independente.
O Paraná também é visto como um local complicado, com polícia truculenta.
As organizadas costumam ser escoltadas das entradas da cidade-sede do jogo até os estádios. Nem sempre funciona. Ônibus de corintianos eram desconhecidos por policiais gaúchos no Olímpico.
Ser torcedor visitante é viajar muito, não saber o caminho e não ter certeza de como será o final da jornada.
"Meu maior perrengue foi quando viajei sem dinheiro nem para comer, nem para o ingresso em um jogo contra o Flamengo, em 2003. Os amigos fortaleceram [ajudaram]", lembra o vendedor Fernando de Assis, 32, membro da Gaviões da Fiel.
Um grupo de maquinistas são-paulinos tem cara de sono no Mineirão. Sua ida a Belo Horizonte foi de carro, saindo de Mogi das Cruzes após um turno noturno. "A gente dirige sem saber onde está indo e no estádio não tem orientação", protesta Valmir Pereira, 28.
Ser torcedor visitante é esperar e respeitar ordens.
"Vir a um jogo do Corinthians é programa para o dia inteiro", lamenta o autônomo Carlos Airton, 29, gaúcho de Livramento.
Ao chegar ao Olímpico, todos os corintianos são levados para uma rua lateral e postos atrás de uma corda por horas. São tocados como gado. Um policial até empurra, de leve, o repórter.
A revista é mais rigorosa que em aeroportos internacionais e inclui a retirada de sapatos. Mulheres e crianças também são vistoriadas.
Sob orientação de um policial, educado e agindo como um chefe de excursão, todos se dirigem à porta do estádio por um corredor da PM. A torcida do Grêmio tenta provocar e é empurrada por policiais a cavalos para um bar.
Ser torcedor visitante é ficar constrangido com gritos de sua própria torcida.
Ao entrar no Olímpico, os corintianos fazem ironias aos gaúchos. Só que metade dos alvinegros é nascida no Sul.
"Aí não gostei", reclamou Gabriel Siccardi, 27, ao ouvir um dos gritos. "Mas, quando estou na torcida do Corinthians, não me sinto minoria", declarou, depois.
Em Minas, um torcedor, com uniforme de uma organizada do Cruzeiro em meio aos são-paulinos, franze o rosto, contrariado, quando todos xingam seu time.
Ser torcedor visitante é se contorcer para assistir ao jogo e se sentir recluso.
O Mineirão tem oito placas de concreto na parte superior da visão dos são-paulinos. Como todos ficam em pé, em metade das cadeiras é preciso curvar as costas para conseguir ver todo o gramado.
O Olímpico tem grades pontiagudas nas laterais e ferros múltiplos nas extremidades. É como um presídio.
O placar de Minas exibe gols antigos do Cruzeiro contra o São Paulo. No Sul, só festeja gols dos gremistas.
Ser torcedor visitante é saber que há uma possibilidade de não assistir ao jogo.
É comum organizadas serem retidas pela polícia no caminho. Às vezes, entram só para o segundo tempo. Em outras, nem isso é possível.
No Sul, um ônibus da corintiana Estopim da Fiel é detido para revistas na entrada da cidade. Só chega ao Olímpico quando faltam dez minutos para acabar o jogo contra o Grêmio. Ainda assim, seus membros não são autorizados a entrar no estádio.
Só dois deles podem levar as faixas para amarrar na arena. Entram correndo, fazem seu serviço e, quando olham para o campo, o juiz apita o final da partida.
"Não sei nem quem jogou. Acabou 2 a 0?", pergunta o estudante Isac Vilela, 16. "Isso acontece em outros lugares." Ele e seus companheiros tinham viajado 20 horas para ir a Porto Alegre.
Ser torcedor visitante é, ainda, festejar em minoria.
Nos dois jogos acompanhados pela Folha na torcida não local, o São Paulo bateu o Cruzeiro (2 a 0), e o Corinthians, o Grêmio (2 a 1).
Só se ouviam as torcidas paulistas ao final das partidas, diante de quase 50 mil cruzeirenses e quase 20 mil gremistas. O goleiro Rogério foi aplaudir os são-paulinos.
Em nova analogia com o sertanejo de Euclides da Cunha, pode-se dizer do torcedor visitante que a sua aparência de fragilidade ilude. Reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã, cuja força cala a maioria.


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