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FUTEBOL
Baixa popularidade acompanha o melhor jogador do mundo desde as "peladas" na periferia de Recife
Na vila, só pai apostava em Rivaldo
FÁBIO VICTOR
enviado especial a Recife
Exceto Romildo Vitor Gomes
Ferreira, o pai, apaixonado por
futebol e torcedor fanático do
Santa Cruz, ninguém nunca levou
muita fé que um menino magricela e desengonçado daqueles pudesse dar certo como atleta.
Na Vila da Chesf, município de
Paulista, região metropolitana de
Recife, "Vado", apelido pelo qual
até hoje é conhecido Rivaldo Vitor Borba Ferreira, 27, o melhor
jogador do mundo em 1999, sempre teve a reputação de um atacante apenas razoável.
Era mais um entre os boleiros
que ocupavam o "campo do eucalipto", que mais tarde, com os eucaliptos postos ao chão, viria a se
chamar Gonzagão -homenagem ao comerciante que promoveu o desmatamento e criou o
único instrumento de lazer da pequena comunidade de quatro
ruas, a 139, a 140, a 141, e a 142.
O irmão Rinaldo, apontavam os
vizinhos, era, sem sombra de dúvidas, o craque da família.
Quando Rivaldo ingressou no
Santa Cruz, seu primeiro clube, o
descrédito continuou: primeiro,
foi dispensado do time júnior.
Nos primeiros jogos como profissional, era vaiado pela torcida, ignorado pela imprensa e desprestigiado pelos dirigentes, a ponto de
ser incluído como contrapeso em
uma troca com o Mogi Mirim.
No seu primeiro grande clube, o
Corinthians, amargou a reserva
em vários jogos.
E, já uma estrela do futebol, foi
apontado como culpado pelo fracasso da seleção brasileira na
Olimpíada de Atlanta.
Ainda hoje, seja no Barcelona
ou na seleção, o melhor do mundo não é uma unanimidade. Sua
"vocação para Judas" é maior do
que a de qualquer outra estrela.
Terceiro filho de Romildo com
Marlúcia Salomão Borba -veio
depois de Ricardo, 32, e Rinaldo,
31, e antes de Cristiane, 25, e Soraya, 22- , Rivaldo mostrou desde
cedo uma personalidade extremamente acanhada.
Não ia a festas, não entrava nas
brincadeiras adolescentes e desdenhava o Carnaval.
Na escola pública Presidente
Castelo Branco, que cursou até a
oitava série, era isolado.
"Ele era fraquinho na leitura em
voz alta, ficava nervoso, a mãozinha fria. Mas era um aluno muito
comportado, melhor que os irmãos, e que tinha um pai muito
assíduo", lembra a professora
Aliete Oliveira Vinezof, 43.
Com as mulheres, o comportamento era semelhante. "Ele sempre foi o mais devagar com namorada", conta o irmão Ricardo.
Rose, uma ex-caixa de supermercado de Mogi Mirim, sua mulher desde 1993 e mãe dos filhos
Rivaldinho, 4, e Tamirez, 2, foi a
primeira namorada.
Para dificultar ainda mais o seu
futuro no futebol, "Vado" jamais
foi daqueles garotos que pensam
em bola 24 horas por dia.
Gostava de bater suas peladas,
mas tinha paixão semelhante por
passarinhos e galos de briga.
Quando não estava jogando, levava os seus papa-capins e chorões para "campear": botava a
gaiola no ombro e ia mostrar o
mundo aos passarinhos.
As limitações de dinheiro da família faziam com que Rivaldo enfrentasse alguns "bicos"para
completar o orçamento.
Junto com colegas, rodava Recife vendendo picolé, coxinha, sonho. O local preferido era o estádio do Arruda, onde unia o útil
(vender seu produto) ao agradável (assistir aos jogos do Santa
Cruz, seu time de coração).
Às vezes, capinava quintais em
troca de umas moedas.
Foi o pai, que não gostava de ver
os filhos pequenos trabalhando,
quem levou Rivaldo e os irmãos
para a escolinha de futebol do
Santa Cruz. Era ele quem os
acompanhava, bancava as passagens de ônibus, se interessava em
saber as novidades dos treinos.
"Meu pai era muito apegado
com a gente, sempre incentivou o
Rivaldo", conta Ricardo.
"Parecia mais um casal de namorados. Os dois andavam sempre de braços dados", lembra Edigley de Souza Lima, 29, um dos
melhores amigos de infância.
Hoje, vendo "Vado" como o
melhor do mundo, ele se espanta.
"Acho que nem ele mesmo sonhava em chegar tão alto. Ele ainda não deve estar acreditando, deve achar que está sonhando", diz
Edigley, goleiro desempregado.
Ele e Rivaldo iam juntos treinar
no Santa Cruz, estudaram na
mesma turma, eram inseparáveis.
Na escolinha do Santa, foram treinados por Mário Santana, ex-integrante da Marinha, que reforçou em Rivaldo o senso de responsabilidade e disciplina.
O grupo de amigos da Vila da
Chesf era formado ainda por
Róbson, morto há cerca de sete
anos, vítima de leptospirose.
De maneira igualmente trágica,
Rivaldo teve, no dia 6 de janeiro
de 1989, a maior tristeza de sua vida. O pai saiu para trabalhar e não
voltou. A família ficou sem notícias de noite e de madrugada.
Somente na manhã do dia seguinte, vizinhos escutaram no
"Bandeira Dois", programa policial radiofônico mais popular do
Estado, e foram avisar: Romildo
havia sido atropelado por um ônibus, no início da tarde do dia anterior, numa avenida movimentada do centro de Recife.
"Ele ficou louco. No enterro, ficou travado, sem chorar. Só olhava, com raiva", diz Ricardo.
A morte do pai, que piorou ainda mais as condições de vida da
família, pode ser tomada como
um divisor de águas na carreira de
Rivaldo. Se por um lado o abalou
profundamente, deu-lhe, ao mesmo tempo, mais motivação.
(A Bola de Ouro ganha como
melhor jogador europeu em 99
foi dedicada a Romildo. Ao marcar um gol em amistoso do Brasil
contra o Barcelona, exibiu uma
camisa com o retrato do pai.)
E a primeira grande provação
veio no mesmo ano, alguns meses
depois. Se Edigley se disse assustado com a ascensão de Rivaldo,
surpreso mesmo ficou Roberto
Madeira, 52, o Betinho.
Meia-atacante do Santa na década de 70, ele parou de jogar em
82 e tornou-se técnico das divisões de base do clube.
Comandava a equipe júnior em
89, quando, em uma das "peneiras" promovidas no Arruda,
mandou Rivaldo embora.
"Ele era um jogador inteligente,
mas, pelas origens, por passar necessidade, não tinha força, o chutezinho era fraco. Eram mais de
50 jogadores, e, numa peneirada,
ele foi no meio. Quem mexe com
essa meninada está sujeito a errar", justifica Betinho, que diz ter
pedido o retorno de Rivaldo ao time depois de este, desiludido, ter
ido para o Paulistano.
"Quando perdemos para o Paulistano e ele fez dois gols, eu perguntei: quem é esse compridão?"
Descobriram que uma inscrição
na federação ainda o ligava Santa
e o levaram de volta.
"Hoje eu assinaria atestado de
burrice, mas são coisas que acontecem na vida do jogador."
Após voltar ao time júnior, Rivaldo foi treinado por Ramon,
atacante que atuou no Santa, no
Vasco e no Inter-RS nos anos 70.
Ramon diz ter ficado impressionado com a qualidade técnica e a
disciplina de Rivaldo, mas notava
que o jovem atacante não tinha
"estrutura orgânica" para se firmar entre os profissionais.
No Arruda, cerca de 25 km distante de sua casa, recebia uma
ajuda de custo correspondente
hoje a US$ 89,00.
"Não adiantava muito fazer reforço muscular, porque a alimentação que ele tinha no clube era
precária", conta Ramon.
Ainda assim, o técnico do profissional, Sérgio Cosme, resolveu
introduzi-lo aos poucos no time.
Teve bastante dificuldades.
Com atuações irregulares, caindo
muito em campo e cansando facilmente, Rivaldo tornou-se alvo
imediato da torcida.
Num clássico contra o Náutico
pelo Pernambucano, em 1º de julho de 91, um dos poucos jogos
que iniciou como titular, Rivaldo
teve a cotação mais baixa da partida em avaliação do "Jornal do
Commercio". "Sem nenhuma
presença na área inimiga e ainda
cansou no final", dizia o comentário que se seguia à nota 4.
Foi nesse cenário que surgiu outro "vilão tardio" da trajetória
pernambucana de Rivaldo.
Diretor do Santa em 91 e amigo
do presidente do Mogi Mirim,
Wilson Barros, Jorge Ribeiro, o
Chacrinha, hoje vereador de Recife (PMDB), foi responsável direto
pela negociação que trocou Rivaldo, Leto e Válber, este o principal
alvo de interesse do Mogi, pelo lateral Malhado, o atacante Pessanha e o zagueiro Paulo Silva.
"Foi a pior negociação da história do Santa Cruz", afirma João
Caxeiro, diretor patrimonial do
Santa, resumindo o sentimento
de parte dos atuais dirigentes.
Chacrinha, que teve e tem até
hoje o aval do então presidente do
clube, Raimundo Moura, se defende alegando que, à época, ninguém -direção, torcida e imprensa- pensava assim.
"Tínhamos um diamante bruto,
mas não sabíamos. Se soubéssemos que Rivaldo era o craque que
é, não teríamos feito uma imbecilidade daquelas", diz.
"Ele era raquítico, magro, desengonçado, desdentado (Rivaldo perdeu cedo os dentes da frente e pôs sua primeira prótese ainda adolescente), e o Santa não tinha nem estrutura nem dinheiro
para mudar isso. Se ele não tivesse
ido para o Mogi, hoje não seria o
melhor do mundo."
A tese é referendada por Ramon
e pelo amigo Edigley, que condena a mágoa guardada por Rivaldo
em relação ao Santa por não ter sido valorizado no episódio.
"Acho que ele deveria agradecer
ao Santa Cruz. Se ele durasse mais
tempo aqui, estaria na mesma situação que estou hoje."
De fato, no Mogi Mirim, que
priorizava a formação de jogadores, Rivaldo ganhou condições físicas de desenvolver sua técnica e
começou a despontar.
Hoje milionário e famoso, Rivaldo, pelo que se vê na Vila da
Chesf, mantém a timidez característica, mas é o mesmo "Vado" de
sempre. "Ele não mudou em nada. Sempre foi aquilo ali. Nunca
teve um inimigo, só amizade", define Manacés Diniz, 35.
Quando está de férias em Recife,
Rivaldo dorme em seu apartamento na praia de Boa Viagem,
mas passa os dias na vila.
Nos finais de ano, sempre participa do confronto Solteiros x Casados no campo do Gonzagão. No
último torneio que participou,
ano passado, seu time foi derrotado nos pênaltis -Rivaldo desperdiçou a última cobrança.
Quanto à mãe, parece a explicação acabada para o acanhamento
do filho ilustre. Marlúcia foge da
imprensa. Não cedeu aos insistente pedidos de entrevista da Folha. Foi quase "forçada" pelo filho
Ricardo a posar para uma foto.
Menos incisiva, o resto da família também evita os holofotes
-pedido do próprio Rivaldo.
Recentemente, um vereador de
Paulista propôs batizar a rua 140,
a da família Borba Ferreira, com o
nome do pai de Rivaldo.
O jogador agradeceu e recusou.
Afirmou que só aceitaria a homenagem se, junto com ela, as ruas
de barro da vila fossem calçadas, o
que até hoje não ocorreu.
A homenagem ao pai, no entanto, virá dos próprios filhos, na forma de uma escola que acabaram
de construir na esquina de casa e
que se chamará Instituto Romildo Vitor. Ricardo, que cuida dos
negócios de Rivaldo em Recife,
acompanhará o trabalho das irmãs Cristiane e Soraya.
Com capacidade para 80 alunos, a escola será inaugurada em
fevereiro e cobrará R$ 25,00 de
mensalidade -R$ 30,00 para os
que precisarem de transporte.
O irmão Rinaldo, o craque da
família, depois de torcer o joelho,
abandonar o futebol e trabalhar
alguns anos como vigilante, está
sem ocupação. Ajudará as irmãs
na condução do novo negócio.
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