São Paulo, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2000


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FUTEBOL
Baixa popularidade acompanha o melhor jogador do mundo desde as "peladas" na periferia de Recife
Na vila, só pai apostava em Rivaldo

FÁBIO VICTOR
enviado especial a Recife

Exceto Romildo Vitor Gomes Ferreira, o pai, apaixonado por futebol e torcedor fanático do Santa Cruz, ninguém nunca levou muita fé que um menino magricela e desengonçado daqueles pudesse dar certo como atleta.
Na Vila da Chesf, município de Paulista, região metropolitana de Recife, "Vado", apelido pelo qual até hoje é conhecido Rivaldo Vitor Borba Ferreira, 27, o melhor jogador do mundo em 1999, sempre teve a reputação de um atacante apenas razoável.
Era mais um entre os boleiros que ocupavam o "campo do eucalipto", que mais tarde, com os eucaliptos postos ao chão, viria a se chamar Gonzagão -homenagem ao comerciante que promoveu o desmatamento e criou o único instrumento de lazer da pequena comunidade de quatro ruas, a 139, a 140, a 141, e a 142.
O irmão Rinaldo, apontavam os vizinhos, era, sem sombra de dúvidas, o craque da família.
Quando Rivaldo ingressou no Santa Cruz, seu primeiro clube, o descrédito continuou: primeiro, foi dispensado do time júnior. Nos primeiros jogos como profissional, era vaiado pela torcida, ignorado pela imprensa e desprestigiado pelos dirigentes, a ponto de ser incluído como contrapeso em uma troca com o Mogi Mirim.
No seu primeiro grande clube, o Corinthians, amargou a reserva em vários jogos.
E, já uma estrela do futebol, foi apontado como culpado pelo fracasso da seleção brasileira na Olimpíada de Atlanta.
Ainda hoje, seja no Barcelona ou na seleção, o melhor do mundo não é uma unanimidade. Sua "vocação para Judas" é maior do que a de qualquer outra estrela.
Terceiro filho de Romildo com Marlúcia Salomão Borba -veio depois de Ricardo, 32, e Rinaldo, 31, e antes de Cristiane, 25, e Soraya, 22- , Rivaldo mostrou desde cedo uma personalidade extremamente acanhada.
Não ia a festas, não entrava nas brincadeiras adolescentes e desdenhava o Carnaval.
Na escola pública Presidente Castelo Branco, que cursou até a oitava série, era isolado.
"Ele era fraquinho na leitura em voz alta, ficava nervoso, a mãozinha fria. Mas era um aluno muito comportado, melhor que os irmãos, e que tinha um pai muito assíduo", lembra a professora Aliete Oliveira Vinezof, 43.
Com as mulheres, o comportamento era semelhante. "Ele sempre foi o mais devagar com namorada", conta o irmão Ricardo.
Rose, uma ex-caixa de supermercado de Mogi Mirim, sua mulher desde 1993 e mãe dos filhos Rivaldinho, 4, e Tamirez, 2, foi a primeira namorada.
Para dificultar ainda mais o seu futuro no futebol, "Vado" jamais foi daqueles garotos que pensam em bola 24 horas por dia.
Gostava de bater suas peladas, mas tinha paixão semelhante por passarinhos e galos de briga.
Quando não estava jogando, levava os seus papa-capins e chorões para "campear": botava a gaiola no ombro e ia mostrar o mundo aos passarinhos.
As limitações de dinheiro da família faziam com que Rivaldo enfrentasse alguns "bicos"para completar o orçamento.
Junto com colegas, rodava Recife vendendo picolé, coxinha, sonho. O local preferido era o estádio do Arruda, onde unia o útil (vender seu produto) ao agradável (assistir aos jogos do Santa Cruz, seu time de coração).
Às vezes, capinava quintais em troca de umas moedas.
Foi o pai, que não gostava de ver os filhos pequenos trabalhando, quem levou Rivaldo e os irmãos para a escolinha de futebol do Santa Cruz. Era ele quem os acompanhava, bancava as passagens de ônibus, se interessava em saber as novidades dos treinos.
"Meu pai era muito apegado com a gente, sempre incentivou o Rivaldo", conta Ricardo.
"Parecia mais um casal de namorados. Os dois andavam sempre de braços dados", lembra Edigley de Souza Lima, 29, um dos melhores amigos de infância.
Hoje, vendo "Vado" como o melhor do mundo, ele se espanta.
"Acho que nem ele mesmo sonhava em chegar tão alto. Ele ainda não deve estar acreditando, deve achar que está sonhando", diz Edigley, goleiro desempregado.
Ele e Rivaldo iam juntos treinar no Santa Cruz, estudaram na mesma turma, eram inseparáveis. Na escolinha do Santa, foram treinados por Mário Santana, ex-integrante da Marinha, que reforçou em Rivaldo o senso de responsabilidade e disciplina.
O grupo de amigos da Vila da Chesf era formado ainda por Róbson, morto há cerca de sete anos, vítima de leptospirose.
De maneira igualmente trágica, Rivaldo teve, no dia 6 de janeiro de 1989, a maior tristeza de sua vida. O pai saiu para trabalhar e não voltou. A família ficou sem notícias de noite e de madrugada.
Somente na manhã do dia seguinte, vizinhos escutaram no "Bandeira Dois", programa policial radiofônico mais popular do Estado, e foram avisar: Romildo havia sido atropelado por um ônibus, no início da tarde do dia anterior, numa avenida movimentada do centro de Recife.
"Ele ficou louco. No enterro, ficou travado, sem chorar. Só olhava, com raiva", diz Ricardo.
A morte do pai, que piorou ainda mais as condições de vida da família, pode ser tomada como um divisor de águas na carreira de Rivaldo. Se por um lado o abalou profundamente, deu-lhe, ao mesmo tempo, mais motivação.
(A Bola de Ouro ganha como melhor jogador europeu em 99 foi dedicada a Romildo. Ao marcar um gol em amistoso do Brasil contra o Barcelona, exibiu uma camisa com o retrato do pai.)
E a primeira grande provação veio no mesmo ano, alguns meses depois. Se Edigley se disse assustado com a ascensão de Rivaldo, surpreso mesmo ficou Roberto Madeira, 52, o Betinho.
Meia-atacante do Santa na década de 70, ele parou de jogar em 82 e tornou-se técnico das divisões de base do clube.
Comandava a equipe júnior em 89, quando, em uma das "peneiras" promovidas no Arruda, mandou Rivaldo embora.
"Ele era um jogador inteligente, mas, pelas origens, por passar necessidade, não tinha força, o chutezinho era fraco. Eram mais de 50 jogadores, e, numa peneirada, ele foi no meio. Quem mexe com essa meninada está sujeito a errar", justifica Betinho, que diz ter pedido o retorno de Rivaldo ao time depois de este, desiludido, ter ido para o Paulistano.
"Quando perdemos para o Paulistano e ele fez dois gols, eu perguntei: quem é esse compridão?" Descobriram que uma inscrição na federação ainda o ligava Santa e o levaram de volta.
"Hoje eu assinaria atestado de burrice, mas são coisas que acontecem na vida do jogador."
Após voltar ao time júnior, Rivaldo foi treinado por Ramon, atacante que atuou no Santa, no Vasco e no Inter-RS nos anos 70.
Ramon diz ter ficado impressionado com a qualidade técnica e a disciplina de Rivaldo, mas notava que o jovem atacante não tinha "estrutura orgânica" para se firmar entre os profissionais.
No Arruda, cerca de 25 km distante de sua casa, recebia uma ajuda de custo correspondente hoje a US$ 89,00.
"Não adiantava muito fazer reforço muscular, porque a alimentação que ele tinha no clube era precária", conta Ramon.
Ainda assim, o técnico do profissional, Sérgio Cosme, resolveu introduzi-lo aos poucos no time.
Teve bastante dificuldades. Com atuações irregulares, caindo muito em campo e cansando facilmente, Rivaldo tornou-se alvo imediato da torcida.
Num clássico contra o Náutico pelo Pernambucano, em 1º de julho de 91, um dos poucos jogos que iniciou como titular, Rivaldo teve a cotação mais baixa da partida em avaliação do "Jornal do Commercio". "Sem nenhuma presença na área inimiga e ainda cansou no final", dizia o comentário que se seguia à nota 4.
Foi nesse cenário que surgiu outro "vilão tardio" da trajetória pernambucana de Rivaldo.
Diretor do Santa em 91 e amigo do presidente do Mogi Mirim, Wilson Barros, Jorge Ribeiro, o Chacrinha, hoje vereador de Recife (PMDB), foi responsável direto pela negociação que trocou Rivaldo, Leto e Válber, este o principal alvo de interesse do Mogi, pelo lateral Malhado, o atacante Pessanha e o zagueiro Paulo Silva.
"Foi a pior negociação da história do Santa Cruz", afirma João Caxeiro, diretor patrimonial do Santa, resumindo o sentimento de parte dos atuais dirigentes.
Chacrinha, que teve e tem até hoje o aval do então presidente do clube, Raimundo Moura, se defende alegando que, à época, ninguém -direção, torcida e imprensa- pensava assim.
"Tínhamos um diamante bruto, mas não sabíamos. Se soubéssemos que Rivaldo era o craque que é, não teríamos feito uma imbecilidade daquelas", diz.
"Ele era raquítico, magro, desengonçado, desdentado (Rivaldo perdeu cedo os dentes da frente e pôs sua primeira prótese ainda adolescente), e o Santa não tinha nem estrutura nem dinheiro para mudar isso. Se ele não tivesse ido para o Mogi, hoje não seria o melhor do mundo."
A tese é referendada por Ramon e pelo amigo Edigley, que condena a mágoa guardada por Rivaldo em relação ao Santa por não ter sido valorizado no episódio.
"Acho que ele deveria agradecer ao Santa Cruz. Se ele durasse mais tempo aqui, estaria na mesma situação que estou hoje."
De fato, no Mogi Mirim, que priorizava a formação de jogadores, Rivaldo ganhou condições físicas de desenvolver sua técnica e começou a despontar.
Hoje milionário e famoso, Rivaldo, pelo que se vê na Vila da Chesf, mantém a timidez característica, mas é o mesmo "Vado" de sempre. "Ele não mudou em nada. Sempre foi aquilo ali. Nunca teve um inimigo, só amizade", define Manacés Diniz, 35.
Quando está de férias em Recife, Rivaldo dorme em seu apartamento na praia de Boa Viagem, mas passa os dias na vila.
Nos finais de ano, sempre participa do confronto Solteiros x Casados no campo do Gonzagão. No último torneio que participou, ano passado, seu time foi derrotado nos pênaltis -Rivaldo desperdiçou a última cobrança.
Quanto à mãe, parece a explicação acabada para o acanhamento do filho ilustre. Marlúcia foge da imprensa. Não cedeu aos insistente pedidos de entrevista da Folha. Foi quase "forçada" pelo filho Ricardo a posar para uma foto.
Menos incisiva, o resto da família também evita os holofotes -pedido do próprio Rivaldo.
Recentemente, um vereador de Paulista propôs batizar a rua 140, a da família Borba Ferreira, com o nome do pai de Rivaldo.
O jogador agradeceu e recusou. Afirmou que só aceitaria a homenagem se, junto com ela, as ruas de barro da vila fossem calçadas, o que até hoje não ocorreu.
A homenagem ao pai, no entanto, virá dos próprios filhos, na forma de uma escola que acabaram de construir na esquina de casa e que se chamará Instituto Romildo Vitor. Ricardo, que cuida dos negócios de Rivaldo em Recife, acompanhará o trabalho das irmãs Cristiane e Soraya.
Com capacidade para 80 alunos, a escola será inaugurada em fevereiro e cobrará R$ 25,00 de mensalidade -R$ 30,00 para os que precisarem de transporte.
O irmão Rinaldo, o craque da família, depois de torcer o joelho, abandonar o futebol e trabalhar alguns anos como vigilante, está sem ocupação. Ajudará as irmãs na condução do novo negócio.


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