São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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FUTEBOL

Há 30 anos, em plena repressão militar, ex-jogador ganhou "liberdade" na Justiça e foi homenageado em canção

Prezado Afonsinho vê tráfico no passe

JOSÉ ALBERTO BOMBIG
DO PAINEL FC

A luta de Afonsinho pelo passe livre e por outros direitos dos jogadores marcou tanto o início dos anos 70 que o ex-jogador foi homenageado na canção "Meio-de-Campo", de Gilberto Gil: "Prezado amigo Afonsinho, eu continuo aqui mesmo, aperfeiçoando o imperfeito, dando um tempo, dando um jeito...", diz a letra.
As homenagens parecem ter parado aí, assim como os avanços dos jogadores profissionais no âmbito trabalhista. E quem resolveu dar um tempo, descontente com o que chama de "mercantilismo esportivo", foi o próprio Afonsinho, 53, há quase 20 anos afastado do futebol.
Em 1971, na fase mais dura da repressão militar, o meio-campista Afonsinho conseguiu o passe livre na Justiça, após uma disputa desgastante com o Botafogo.
Desde então, muita coisa mudou na vida do ex-jogador, menos suas convicções sobre o passe, que ele considera escravagista. Sob a ótica de Afonsinho, hoje médico psiquiatra, os "intermediários" do futebol se assemelham aos traficantes de escravos.
"Trinta anos se passaram da minha vitória na Justiça, mas os clubes e a imensa maioria dos jogadores continuam pobres. Só ganhou dinheiro com o passe o intermediário, que é o dirigente e o empresário, cada vez mais ricos."
Prorrogar mais uma vez o fim do passe, como se cogita no governo, é, segundo Afonsinho, lutar contra o inexorável.
"Todos os argumentos contra o fim do passe caíram por terra, pois até os investimentos nas categorias de base diminuíram radicalmente, mesmo com a obrigatoriedade do passe vigorando. O fim desse sistema colonial está chegando, tenho certeza."
Mas enquanto ministros, senadores, deputados, dirigentes, advogados, jogadores e ex-jogadores discutem se o passe deve ou não acabar no próximo mês, como manda a lei, Afonsinho, sem ressentimento, segue ensinando futebol para pacientes de um hospital psiquiátrico, onde trabalha, e para crianças de uma favela do Rio de Janeiro, onde mora.
"Nunca mais trabalhei profissionalmente com o futebol. O esporte como negócio explodiu e fugiu de controle. Não sei se me encaixo nisso."

Rebelde barbudo
Em 1972, Gilberto Gil voltava ao Brasil do exílio na Inglaterra e queria saber o que havia de novo no país. De barba e cabelos longos -símbolos da contracultura e do engajamento político-, Afonsinho representava o novo, pelo menos no mundo do futebol.
O meio-campista havia conseguido, um ano antes, o passe livre após uma disputa na Justiça contra o Botafogo.
O visual e a postura de Afonsinho, então já no quarto ano da faculdade de medicina, não agradavam a diretoria do clube carioca. A direção do Botafogo decidiu retaliar o jogador, que se recusava a raspar a barba.
"Me proibiram de treinar e até de receber material esportivo na rouparia do clube. Enfim, fiquei impedido de exercer minha profissão", conta Afonsinho, que não titubeou em procurar seus direitos na Justiça.
No meio da crise de relacionamento, o Botafogo havia emprestado Afonsinho, jogador de futebol refinado, para o Olaria, pequeno clube da zona norte do Rio. "Foi o meu grande pulo. Tentaram me soterrar, mas eu dei a volta por cima e chamei a atenção para o assunto", recorda ele.
O Olaria surpreendeu. Terminou o Estadual daquele ano na terceira posição, apenas quatro pontos atrás do Fluminense, o campeão do torneio.
A Justiça acabou dando a vitória para Afonsinho, que, então, se transformou em uma espécie de símbolo no futebol da luta pela liberdade de expressão no Brasil.
O ex-jogador passou a frequentar o circuito intelectual, a "resistência", carioca.
Por intermédio do compositor Paulinho da Viola e do poeta Capinan, Gil teve a oportunidade de ir ao Maracanã assistir a um jogo acompanhado de Afonsinho.
"Algum tempo depois encontrei uma pessoa que disse: "O Gil fez uma música que fala de você". Até hoje fico orgulhoso, principalmente depois que a Elis Regina gravou", diz Afonsinho.
A canção faz parte do álbum "Elis" da cantora (morta em 1982), lançado em 1973. "A gravação dela é um atestado de qualidade", declara o ex-jogador.

Volta por cima
Com o passe livre nas mãos e seu bom futebol nos pés, Afonsinho fez uma carreira de sucesso. Jogou no Vasco, no Santos, no Flamengo e no Fluminense, onde encerrou a carreira, em 1982.
Sua contribuição para a história do futebol brasileiro, no entanto, será sempre lembrada pela atuação fora de campo.
"Na época, até antes mesmo do problema com o clube, o Afonsinho já era uma pessoa que discutia o assunto do passe. Eu, por exemplo, não tinha consciência do problema", afirma o ex-jogador da seleção Tostão.
Na opinião dele, o futebol precisa de pessoas como Afonsinho. "Ele continua sendo um idealista", diz Tostão, que, por sinal, também é citado na música de Gil (leia letra acima) e é médico.
Mas o histórico de Afonsinho não tem garantido a ele voz nos debates que vêm sendo travados em Brasília sobre o fim do passe, previsto para o dia 26 de março.
"Estou sendo alijado por quem está tratando do assunto atualmente", diz o ex-jogador, que, por falta de convite, não participou da audiência sobre o tema promovida pelo Senado, na quinta passada, e não deverá participar do debate na Câmara dos Deputados.
Mas a vontade de voltar ao futebol profissional começa a aflorar, motivada principalmente pelo atual momento do país.
"As CPIs que investigam o futebol no Congresso são saudáveis, espero que elas não percam a oportunidade de mudar o que não está dando certo."
Para Afonsinho, as contribuições dos ex-jogadores Zico e Pelé foram fundamentais para acabar com a "escravatura" no futebol, mas ainda falta arrebentar o último grilhão. "O Pelé (também citado na música) ainda continua sendo a pessoa mais indicada para acabar com essa vergonha."
O ex-jogador afirma que, se não voltar a trabalhar no futebol, poderá se aposentar de vez.
Até se decidir sobre o futuro, Afonsinho continuará utilizando o futebol nos trabalhos do Instituto Pinel, onde faz parte de um projeto de desospitalização, o Lar Abrigado. No Vidigal, ele dá aulas do esporte para crianças e adolescentes. "Me sinto bem assim."


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