|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FUTEBOL
Há 30 anos, em plena repressão militar, ex-jogador ganhou "liberdade" na Justiça e foi homenageado em canção
Prezado Afonsinho vê tráfico no passe
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
DO PAINEL FC
A luta de Afonsinho pelo passe
livre e por outros direitos dos jogadores marcou tanto o início dos
anos 70 que o ex-jogador foi homenageado na canção "Meio-de-Campo", de Gilberto Gil: "Prezado amigo Afonsinho, eu continuo
aqui mesmo, aperfeiçoando o imperfeito, dando um tempo, dando
um jeito...", diz a letra.
As homenagens parecem ter parado aí, assim como os avanços
dos jogadores profissionais no
âmbito trabalhista. E quem resolveu dar um tempo, descontente
com o que chama de "mercantilismo esportivo", foi o próprio
Afonsinho, 53, há quase 20 anos
afastado do futebol.
Em 1971, na fase mais dura da
repressão militar, o meio-campista Afonsinho conseguiu o passe livre na Justiça, após uma disputa
desgastante com o Botafogo.
Desde então, muita coisa mudou na vida do ex-jogador, menos
suas convicções sobre o passe,
que ele considera escravagista.
Sob a ótica de Afonsinho, hoje
médico psiquiatra, os "intermediários" do futebol se assemelham aos traficantes de escravos.
"Trinta anos se passaram da minha vitória na Justiça, mas os clubes e a imensa maioria dos jogadores continuam pobres. Só ganhou dinheiro com o passe o intermediário, que é o dirigente e o
empresário, cada vez mais ricos."
Prorrogar mais uma vez o fim
do passe, como se cogita no governo, é, segundo Afonsinho, lutar contra o inexorável.
"Todos os argumentos contra o
fim do passe caíram por terra,
pois até os investimentos nas categorias de base diminuíram radicalmente, mesmo com a obrigatoriedade do passe vigorando. O
fim desse sistema colonial está
chegando, tenho certeza."
Mas enquanto ministros, senadores, deputados, dirigentes, advogados, jogadores e ex-jogadores discutem se o passe deve ou
não acabar no próximo mês, como manda a lei, Afonsinho, sem
ressentimento, segue ensinando
futebol para pacientes de um hospital psiquiátrico, onde trabalha, e
para crianças de uma favela do
Rio de Janeiro, onde mora.
"Nunca mais trabalhei profissionalmente com o futebol. O esporte como negócio explodiu e
fugiu de controle. Não sei se me
encaixo nisso."
Rebelde barbudo
Em 1972, Gilberto Gil voltava ao
Brasil do exílio na Inglaterra e
queria saber o que havia de novo
no país. De barba e cabelos longos
-símbolos da contracultura e do
engajamento político-, Afonsinho representava o novo, pelo
menos no mundo do futebol.
O meio-campista havia conseguido, um ano antes, o passe livre
após uma disputa na Justiça contra o Botafogo.
O visual e a postura de Afonsinho, então já no quarto ano da faculdade de medicina, não agradavam a diretoria do clube carioca.
A direção do Botafogo decidiu retaliar o jogador, que se recusava a
raspar a barba.
"Me proibiram de treinar e até
de receber material esportivo na
rouparia do clube. Enfim, fiquei
impedido de exercer minha profissão", conta Afonsinho, que não
titubeou em procurar seus direitos na Justiça.
No meio da crise de relacionamento, o Botafogo havia emprestado Afonsinho, jogador de futebol refinado, para o Olaria, pequeno clube da zona norte do Rio.
"Foi o meu grande pulo. Tentaram me soterrar, mas eu dei a volta por cima e chamei a atenção
para o assunto", recorda ele.
O Olaria surpreendeu. Terminou o Estadual daquele ano na
terceira posição, apenas quatro
pontos atrás do Fluminense, o
campeão do torneio.
A Justiça acabou dando a vitória
para Afonsinho, que, então, se
transformou em uma espécie de
símbolo no futebol da luta pela liberdade de expressão no Brasil.
O ex-jogador passou a frequentar o circuito intelectual, a "resistência", carioca.
Por intermédio do compositor
Paulinho da Viola e do poeta Capinan, Gil teve a oportunidade de
ir ao Maracanã assistir a um jogo
acompanhado de Afonsinho.
"Algum tempo depois encontrei uma pessoa que disse: "O Gil
fez uma música que fala de você".
Até hoje fico orgulhoso, principalmente depois que a Elis Regina
gravou", diz Afonsinho.
A canção faz parte do álbum
"Elis" da cantora (morta em
1982), lançado em 1973. "A gravação dela é um atestado de qualidade", declara o ex-jogador.
Volta por cima
Com o passe livre nas mãos e
seu bom futebol nos pés, Afonsinho fez uma carreira de sucesso.
Jogou no Vasco, no Santos, no
Flamengo e no Fluminense, onde
encerrou a carreira, em 1982.
Sua contribuição para a história
do futebol brasileiro, no entanto,
será sempre lembrada pela atuação fora de campo.
"Na época, até antes mesmo do
problema com o clube, o Afonsinho já era uma pessoa que discutia o assunto do passe. Eu, por
exemplo, não tinha consciência
do problema", afirma o ex-jogador da seleção Tostão.
Na opinião dele, o futebol precisa de pessoas como Afonsinho.
"Ele continua sendo um idealista", diz Tostão, que, por sinal,
também é citado na música de Gil
(leia letra acima) e é médico.
Mas o histórico de Afonsinho
não tem garantido a ele voz nos
debates que vêm sendo travados
em Brasília sobre o fim do passe,
previsto para o dia 26 de março.
"Estou sendo alijado por quem
está tratando do assunto atualmente", diz o ex-jogador, que, por
falta de convite, não participou da
audiência sobre o tema promovida pelo Senado, na quinta passada, e não deverá participar do debate na Câmara dos Deputados.
Mas a vontade de voltar ao futebol profissional começa a aflorar,
motivada principalmente pelo
atual momento do país.
"As CPIs que investigam o futebol no Congresso são saudáveis,
espero que elas não percam a
oportunidade de mudar o que
não está dando certo."
Para Afonsinho, as contribuições dos ex-jogadores Zico e Pelé
foram fundamentais para acabar
com a "escravatura" no futebol,
mas ainda falta arrebentar o último grilhão. "O Pelé (também citado na música) ainda continua
sendo a pessoa mais indicada para acabar com essa vergonha."
O ex-jogador afirma que, se não
voltar a trabalhar no futebol, poderá se aposentar de vez.
Até se decidir sobre o futuro,
Afonsinho continuará utilizando
o futebol nos trabalhos do Instituto Pinel, onde faz parte de um
projeto de desospitalização, o Lar
Abrigado. No Vidigal, ele dá aulas
do esporte para crianças e adolescentes. "Me sinto bem assim."
Texto Anterior: Benfica e Boavista fazem jogo do ano em Portugal Próximo Texto: Riqueza restrita faz crescer índice de atletas pobres Índice
|