São Paulo, sábado, 25 de julho de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

Amigo de fé


Ao homenagear o camarada Lulinha, Dentinho repetiu gestos nobres de craques como Rivaldo e Carlitos Tevez


"A POESIA está para a prosa como o amor está para a amizade, e quem há de negar que esta lhe é superior?", cantou Caetano Veloso.
Dentinho assinaria embaixo. Anteontem à noite, no Pacaembu, o jovem craque protagonizou a cena mais bonita da semana. Ao comemorar seu gol, e que gol!, contra o Vitória, Dentinho tirou a camisa alvinegra para mostrar, na camiseta que vestia por baixo, uma inscrição de apoio ao amigo Lulinha, emprestado para um time da segunda divisão portuguesa, o Estoril.
Para quem não se lembra, Lulinha surgiu, junto com Dentinho, das categorias de base do Corinthians. Ambos são frutos do "terrão", o precário campo de "peneira" do alvinegro na zona leste paulistana.
Lulinha se destacou primeiro, e a crônica esportiva passou afoitamente a incensá-lo como o craque que não era.
Dentinho, naquela época (uns três anos atrás), por sugestão do técnico Paulo César Carpegiani, ainda era chamado de Bruno Bonfim, nome de advogado ou gerente de banco, que não condiz com sua estampa de garoto desengonçado da periferia.
De lá para cá a situação se inverteu. Enquanto Dentinho aos poucos se firmava, amadurecendo e aprimorando seu futebol, Lulinha amargava um declínio sem trégua. Desprestigiado pela comissão técnica, vaiado pela torcida, o rapaz criou raízes no banco de reservas. Os dirigentes corintianos, que haviam sonhado com uma negociação milionária com um time de primeira linha da Espanha ou da Itália, tiveram que se conformar com um empréstimo ao obscuro Estoril.
É nessas horas de baixa que aparecem os verdadeiros amigos. O gesto de Dentinho me lembrou de outras comoventes demonstrações de solidariedade. Onze anos atrás, quando estava com o cartaz em alta no Barcelona, Rivaldo comemorou um gol exibindo uma mensagem de apoio ao colega Giovanni, que, na reserva do clube azul-grená, vivia o começo de um ostracismo do qual nunca sairia de fato.
Em fevereiro de 2005, o argentino Carlitos Tevez, então ídolo maior do Corinthians, enfrentou a sanha da torcida ao defender, fazendo com as mãos o número 6, o lateral Fininho, que estava sendo hostilizado. Mostrou à Fiel o que é ser fiel. Gente desse estofo não nasce todo dia, seja nos Jardins, no bairro Fuerte Apache ou nos alagados de Recife.
Dentinho sabia que, com seu gesto, receberia o amarelo e tomaria uma bronca do treinador. Não quis saber. Certos valores falam mais alto. Quantas vezes não afinamos, na vida, por medo de um cartão amarelo? Levantar a voz para o chefe, defender um colega de classe, dizer à mulher proibida a palavra engasgada... Atitudes passíveis de punição, a regra é clara. E amarelamos.
Se Pelé disse "love, love, love" ao se despedir do Cosmos e do futebol, Dentinho escreveu, com caneta hidrográfica e tosca caligrafia, a palavra amizade. Por uma caprichosa simetria poética, na noite de quinta-feira ele uniu as pontas do seu novelo oferecendo a camisa que usou na partida, a de cima, ao treinador do Vitória, o mesmo Carpegiani que o promoveu ao time profissional e tentou em vão lhe dar um nome "de respeito". Grande garoto.

jgcouto@uol.com.br


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