São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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MEMÓRIA

Biógrafo de Leônidas relembra episódios em que o jogador, morto anteontem, demarcou o seu lugar na história

"Diamante" tinha noção de sua eternidade

ANDRÉ RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Leônidas da Silva viveu os últimos dez anos de sua vida em um quarto da clínica São Camilo, cercado de quadros e objetos com recordações de sua carreira gloriosa. Bolas, fotografias, bandeiras do São Paulo e até mesmo um uniforme original utilizado na Copa do Mundo de 1938 não estavam ali apenas como decoração, mas como importantes instrumentos para estimular a memória roubada pelo mal de Alzheimer.
Segundo os especialistas, com o passar do tempo essa doença deixa na cabeça de suas vítimas apenas flashes de suas experiências e, por isso, manter esses objetos era importante no seu tratamento.
Leônidas já não falava havia muito tempo. Nos dez anos em que esteve internado, uma vez ou outra conseguiu emitir algumas frases, mas nada ligado ao futebol que o consagrou. Uma vez, porém, as teorias de seus médicos foram comprovadas. Alguns dias após o lançamento de sua biografia, em 1998, sua mulher, Albertina, ligou aos prantos para o autor para informar que Leônidas havia falado uma frase que ela acabara de ler nas páginas de sua vida.
Desde que se conheceram, em 1954, Leônidas pouco falara de suas aventuras pelos gramados. Do episódio ocorrido na concentração da seleção brasileira, no distante ano de 1938 então, jamais. Todos os jogadores já estavam havia dois dias concentrados na cidade de Caxambu (MG), e nada de Leônidas aparecer. A imprensa cobrava insistentemente qual seria a atitude do técnico da seleção, Ademar Pimenta. Até que, cansado pela espera, ele resolveu dizer que, caso o craque não se apresentasse imediatamente, seria cortado do grupo que iria embarcar para a disputa da Copa do Mundo da França.
Bastou dizer isso e veio a informação de que Leônidas acabara de chegar à estação de trem. Foi um corre-corre geral. Privilégio das estrelas, Leônidas contratara um vagão especial, só para ele e a mulher, chamado de Pulmann, e desembarcou tranqüilamente, após mais de dez horas de viagem desde a cidade do Rio de Janeiro.
O batalhão de repórteres que o aguardava começou a disparar perguntas, uma em especial: "Leônidas, Ademar Pimenta afirmou que, se você não se apresentasse hoje, seria cortado do grupo. O que você tem a dizer?".
A resposta foi idêntica à dada por ele à Albertina no dia em que recebeu de suas mãos o livro sobre sua vida. Leônidas levantou a cabeça, disparou um olhar fulminante para a eterna companheira e, como se estivesse vendo um batalhão de repórteres à sua frente, disse, com simplicidade: "Eu sou Leônidas".
Se tinha consciência do que disse à mulher, ninguém jamais saberá. Mas a força de suas palavras, tanto em 1938 como 60 anos depois, revelavam sua preocupação de não deixar sua história se apagar na memória.


André Ribeiro, 41, é jornalista, autor de "Diamante Eterno" (Gryphus), biografia de Leônidas, e produtor de um filme sobre a história do jogador

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