São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2005

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Natália, 20, ouve com os olhos para vingar no vôlei

Surda há 16 anos, jogadora supera deficiência e chega aos mata-matas da Superliga com o Uberlândia

MARIANA LAJOLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 4 anos, Natália começou a ficar amuada, com dificuldade para se comunicar. Preocupada, a mãe a levou ao médico. Diagnóstico: a filha adotiva estava surda.
A sentença, que não chegou acompanhada de explicação ou esperança, poderia desmoronar a família. Mas desde que a ouviu, Irani decidiu dedicar os seus dias para fazer com que a filha tivesse uma vida normal. E conseguiu.
O maior exemplo foi visto nas quadras nesta temporada. Natália é titular do Uberlândia. Mais: é a primeira jogadora de vôlei surda a atuar profissionalmente no país.
A saga de Natália Aparecida Martins no esporte começou aos 11 anos, quando ela se encantou com fitas e arcos da ginástica rítmica do Centro Social Urbano de Lorena (188 km a nordeste de São Paulo), sua cidade natal.
Três anos depois, sua professora achou que a ginasta poderia pôr seu 1,85 m a serviço de outro esporte. Da estréia nas piruetas às cortadas, Natália contou com a solidariedade dos clubes por onde passou. Era um espelho do que sempre teve na família.
Com um dia de vida, a menina aportou na humilde casa de Irani. Desde solteira, ela acalentava o sonho de adotar uma criança negra. Após ver nascer os dois filhos legítimos, decidiu concretizá-lo.
"Eu sou apaixonada por essa neguinha. Ela é a minha vida", conta a mãe, emocionada.
Foi ela que, de forma intuitiva, ensinou Natália a ler lábios. E que lutou para que a filha não fosse vista como uma pessoa diferente.
Em todo começo de ano letivo, Irani batia à porta da escola e falava com professores. Sua idéia era simples: "Eu só pedia que dessem as explicações virados para a classe, para que ela lesse os lábios".
Uma vez, acabou surpreendida por uma diretora que havia "descoberto" uma deficiente na sexta série e queria sua remoção. "Tirei a Natália de lá no ato", relembra.
O caso de discriminação no vôlei também é pontual. Depois de sair de Lorena, Natália passou por Guaratinguetá, Mogi, Rio e Varginha. A última parada quase marcou o fim de sua breve carreira.
"O técnico gritava comigo, me humilhava. Até os bandeirinhas me defendiam. Eu saía dos jogos chorando", conta ela, que guardou segredo da mãe até receber convite do Uberlândia em 2004. Para atuar na nova equipe, recusou proposta da Espanha.
"Tem muita menina indo pra fora. Lá você ganha melhor, mas muitas meninas ainda não estão prontas. Prefiro ficar e aprender mais", diz a meio, que não aparece com destaque em nenhuma lista de estatísticas da Superliga.
Natália, 20, fala com certa dificuldade, fruto da deficiência. Mas seu maior problema é manter atenção na quadra mesmo quando usa o aparelho auditivo.
"Às vezes eu grito para ela atacar de determinado jeito e ela abaixa a cabeça e pede desculpa, achando que é uma bronca. Mas nada disso atrapalha", conta o técnico Percy Oncken.
A atleta também tem dificuldade para ouvir os gritos das companheiras que pedem para correr atrás da bola ou sair da frente.
"Já falei para me empurrarem. Se gritar eu não vou ouvir", diz.
Para se aprimorar, ela recebe apoio de Teresa Meireles, psicóloga que tenta ensiná-la a fazer de seus olhos seus ouvidos. Após os treinos, elas fazem exercícios de reação. Sem bola, Teresa dá comandos como "pega", "deixa", e Natália tem de reagir a eles apenas com expressão corporal.
A surdez da atleta não tem cura. Os médicos nunca explicaram se ela foi fruto de uma inflamação ou doença herdada da mãe biológica.
Quem vê os jogos do Uberlândia, no entanto, só nota sua deficiência por causa do aparelho preso à orelha. A jogadora vibra, conversa com as companheiras, faz piada, dá broncas. Às vezes, entra na frente de alguém, atrapalha uma jogada, mas são erros comuns, cometidos também por atletas com a audição perfeita.
Problemas maiores ela enfrentou nos períodos em que ficou sem aparelho -o que ostenta hoje foi presente do clube. Na quadra, Natália ainda se virava, mas em casa precisava de intermediários nas conversas telefônicas. "Era um tal de técnico ligar aqui para ficar falando mal do outro, pedir para ela trocar de time... Eu ouvia tudo e ela só ria", diz Irani.
Até hoje a mãe não viu Natália na Superliga -não tem TV a cabo. Só uma vez pôde viajar com ela para um torneio, com ajuda de um patrocinador. "Morro de saudade, mas é a profissão dela."
Natália também sofre com a saudade, da família e do noivo, com quem está há dois anos. Gil dá aulas de basquete, mora em Parati e faz faculdade em Niterói. "O duro é ficar longe, agüentar a saudade e manter a confiança. Todo o resto eu tiro de letra."


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