São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

Texto Anterior | Índice

REFUGIADOS

Imigrantes do esporte encaram viagens clandestinas, penam com falta de dinheiro e sofrem sob medo constante

Atleta encara via-crúcis antes de decolar

DA REPORTAGEM LOCAL

Mesmo espremido no porão de um navio cargueiro e sem saber se teria condições de permanecer escondido até colocar os pés em terra firme, João sentia alívio.
Mais uma vez, ele havia escapado da morte. Após deixar o Congo em 1997 por causa da guerra, conseguira uma vida nova -e até aprazível- em Camarões. Apesar da ilegalidade, arrumou vaga na escola, conquistou uma namorada e ganhou alguns trocados jogando futebol. Só que a calmaria durou apenas oito anos.
No final de 2004, a garota com quem saía engravidou, e o relacionamento, até então secreto, chegou aos ouvidos da família.
João é da etnia tutsi, uma das quase 700 que existem na República Democrática do Congo. O pai da namorada pertencia a outro grupo e não gostou da idéia de ver a filha casada com um imigrante de etnia diferente. Jurou, então, o rapaz de morte.
"Eu não sobreviveria se não fugisse. Fui até o porto, me escondi em um navio e escapei. Lembro apenas arrumei um espaço no fosso onde fica a âncora. Não tinha a menor idéia do destino. Só sabia que lá não poderia ficar."
Nas madrugadas entrecortadas pelo sonho recorrente de que seria jogado para fora do navio caso fosse descoberto, João literalmente assaltava a cozinha da embarcação para sobreviver.
Numa das investidas, acabou descoberto pela tripulação. "Pensei que os sonhos fossem se tornar realidade. Mas eles me trataram bem. Ganhei uma cabine com cama, chuveiro e sabonete."
Quase vinte dias após o início da viagem, o congolês avistou uma cidade luminosa no horizonte. "Tudo estava lindo, reluzente. Achei que fosse Nova York."
Era Santos, e João acabou em um escritório da polícia federal. Depois, seguiu para São Paulo, onde disputou o campeonato inter-albergues que o alçou para o futebol. Hoje, a equipe que o acolheu oferece moradia confortável e refeições diárias. Mais: João espera assinar um contrato de profissional já na próxima temporada, quando pretende estar com a documentação de refugiado completa. "Tenho até proposta para sair do Estado e jogar por outras equipes, mas prefiro ir devagar. Já passei por muita coisa ruim na vida e sei que agora estou no caminho certo", diz o lateral-esquerdo.
Sua via-crúcis para sair da África e chegar ao Brasil em nada se compara ao vôo tranqüilo que Massengo Francisco tomou para deixar a Angola com destino ao Rio. Mas a trajetória do outro refugiado que obteve êxito ao buscar integração social no futebol também é cheia de intempéries.
O recrudescimento da guerra civil fez sua família se dividir. A mãe seguiu para a Bélgica com suas duas irmãs em 1997. Seu pai o carregou para o Brasil.
Pouco tempo depois, Massengo foi abandonado na casa de um amigo. O pai retornou sozinho para a Angola. "Mais tarde, recebi por conhecidos a notícia de que ele morreu lá", afirma.
Massengo se destacou na escola do ex-jogador Gonçalves (Botafogo e Vasco, entre outros). Como tem um filho no Brasil, o atacante espera assinar logo um contrato para receber salário e melhorar o padrão de vida -ele ainda vive em um abrigo no Rio.
Grosso modo, o angolano procura uma atividade como a de Rosa, a patinadora colombiana que já consegue um bom dinheiro com as aulas que ministra em um parque de Brasília. A distância que ela percorreu para chegar ao Brasil é menor que o périplo dos africanos. O seu, todavia, estava repleto de obstáculos.
Atordoados pelas ameaças que recebia de facções ligadas ao narcotráfico -a polícia local nunca chegou a identificar se as investidas partiram de membros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)-, sua família deixou a capital Bogotá com destino à cidade de Letícia, na fronteira com o Brasil.
Um avião de carga foi utilizado clandestinamente como meio de transporte. Era o início de uma longa jornada que visava não deixar rastros para os traficantes.
De lá, a família de Rosa seguiu de barco até Manaus. Poucos dias depois, uma nova embarcação os levou até Belém. Na capital paraense, o pai da patinadora conseguiu assentos em um ônibus. Dez dias de estrada depois, chegaram a Brasília.
"O sofrimento fica muito maior durante uma viagem dessas, porque sabemos que o futuro é incerto. Passam pela cabeça pensamentos de saudade, de desespero, de dúvida...", recorda a atleta.
A situação não melhorou na nova morada. Como seu pai não arrumou emprego, Rosa enfrentou tempos austeros. "Passávamos fome, dormíamos no chão, não tínhamos cobertas, faltava tudo."
A guinada ocorreu depois que a família encontrou o Instituto Migrações e Direitos Humanos.
A colombiana ganhou incentivo para voltar a patinar e seu pai conseguiu enfim um lugar no mercado de trabalho -é hoje instrutor de belas artes para jovens.
"Quero tentar competir em um campeonato mundial, o que já é muito para quem pensou no fim de tudo. Felizmente, tive uma chance para recomeçar." (GUILHERME ROSEGUINI E MARIANA LAJOLO)


Texto Anterior: Futebol: Último clássico mineiro do ano define finalista
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.