São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2010

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XICO SÁ

Que fase!



Do gesto obsceno de Ronaldo à superação de Adriano, os nossos craques revelam seus defeitos e sua face humana

AMIGO TORCEDOR, amigo secador, que fase! Que fase estupenda vivemos no nosso futiba. Podemos reclamar de tudo, menos de tédio. E, quando nos poupamos de tal enfezamento existencialista, o que é raro, soltemos todos os rojões e Caramurus.
Até quando falta futebol, os ditos dramas pessoais dos boleiros problemáticos -como se houvesse alguém no mundo que não tivesse a mesma sina- nos revelam a riqueza de um Papillon, de um Conde de Monte Cristo, de uma Dama das Camélias, de uma Senhora dos Afogados. A vida não passa de um "...E o Vento Levou", mesmo em grotões onde nunca ventou ou ventará, na cearense Icó, o maior calor do mundo, ou ao meio-dia de Solidão (PE), de onde envio esta crônica que sua em testosterona e lágrimas.
E, quer saber de uma coisa, a sorte do universo e do futebol são os problemáticos. Se tudo fosse tédio e civilização, Adriano, por exemplo, não havia salvado o Mengo contra o Tigres, na quarta derradeira. Sob regime de provações permanentes, um homem reage. Do contrário, é 0 a 0, o placar dos frouxos e impedidos.
Graças a Deus nossos craques vêm ao mundo com defeitos de fábrica, né?, corintiano Tom Zé, o que os obriga a imagináveis superações. Veja que humaníssimo foi o cotoco, o dedão, o tal gesto obsceno, do Ronaldo para alguns malucos fiéis no estacionamento da Arena Barueri.
Ora, mesmo dentro do seu Jaguar e rumo a uma cobertura de não sei quantos milhões -nunca aprendi a contar dinheiro, gasto sempre antes-, o cara reage com a mesma dignidade do homem comum do busão que tinge de cinza, dívidas e desespero o corredor da av. Santo Amaro.
Questões de classes à parte, o cotoco, como se diz na minha terra, trouxe dramaturgia a uma perigosa frieza que o bom e racional Mano Menezes põe à prova no Corinthians. No Corinthians, repita comigo, no Corinthians, não se trabalha com frieza, como um desconfiado comerciante do Bom Retiro não trabalha com cheques de terceiros.
Tudo seria uma tediosa entrevista com desculpa de bastidor se não fosse o mais humano dos milionários do país e o seu dedo em riste, prova de que a grana jamais compra a sinceridade imediatista de um homem.
Um gesto tão digno que até o PVC, grande cara, saiu do mundo adulto e objetivo. Voltou correndo para os quintais da infância, destino diário de todos os homens. Escreveu, no portal da ESPN, uma bela comparação do caso do R9 com a fábula de João e Maria: "Dá o dedinho, Joãozinho". Coisa linda, linda, linda!
Que fase. Temos de um lado os velhos craques, seus dramas e a luta contra o tédio -única prova de que ainda estamos no jogo. Do outro, a fuzarca dos meninos. Do Barça ou da Vila, tanto faz. Diabos, pivetes, vocês complicaram a ideia que se fazia de futebol hoje. Gracias que pude mostrar aos meus sobrinhos como era a coisa, só por isso já valeu a pena. E, favor, não se preocupem com o final do filme, pouco importa a hora em que o garçom passar a régua.
Futebol bonito é poesia, não carece de "quanto custa", basta dourar o soneto. Brinquem de bola de gude em minhas retinas e reinventem o domingo, pé de cachimbo, dos marmanjos, porque Deus tem direito ao seu honesto dia de descanso.
xico.folha uol.com.br


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