|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ GERALDO COUTO
O guardião do quintal
No dia do goleiro, cabe uma reflexão sobre o papel desse ser singular e diferente de todos os outros no futebol
POUCA GENTE sabe, mas hoje é o
dia do goleiro, data instituída
em 1983 para homenagear o
célebre Manga, pernambucano que
pendurara as chuteiras no ano anterior, aos 45 anos, depois de ter defendido inúmeros clubes pelo Brasil
afora e no exterior, com destaque
para o Botafogo carioca e o Internacional gaúcho.
Muito já se falou e escreveu sobre
o goleiro, esse ser solitário, diferente
de todos os outros jogadores em
campo. Pelo fato de pegar a bola com
as mãos e defender um espaço "doméstico" que remete ao quintal ou à
cozinha, o goleiro foi freqüentemente associado ao universo feminino.
O filósofo alemão Walter Benjamin chegou a compará-lo "à fêmea
que defende o seu ninho com os filhotes". Estou chupando descaradamente essa citação de um livro espetacular que está ainda para ser lançado "Veneno Remédio: o Futebol e
o Brasil" (Companhia das Letras).
Seu autor, José Miguel Wisnik,
que é músico, compositor e professor de literatura na USP, dedica um
capítulo luminoso ao assunto.
"O goleiro é sabidamente um ser
de exceção, e, nos momentos cruciais, um solitário. Como os indivíduos sagrados e malditos, ele pode o
que os outros não podem (tocar a
boca com as mãos) e não pode o que
os outros podem (atravessar todo o
campo e consumar o desejo maior
do jogo, o gol)", afirma Wisnik.
O caráter de bode expiatório do
goleiro fica patente nas transmissões de rádio. Havia em alguma
emissora uma vinheta, a cada vez
que saía um gol: "Vai buscaaar". Um
locutor dizia, com evidente satisfação sádica: "Essa não deu, Gilmar".
Outro: "Manda pro centro, Waldir."
Talvez por isso a figura seja tão lírica e trágica. Foi, vale lembrar, a posição em que atuaram escritores originais, "outsiders", como Vladimir
Nabokov e Albert Camus.
A analogia do goleiro com o lugar
do feminino, com sua defesa da cidadela/virgindade, vem sendo relativizada nos últimos tempos.
O tabu que impedia o goleiro de
sair jogando com os pés já perdeu
muito da sua validade. Depois de
Chilavert e Rogério Ceni, fazer gols
já não é privilégio dos jogadores de
linha. O mais novo membro do clube
é o jovem Bruno, do Flamengo, que
na última quarta-feira fez um golaço
de falta contra o Coronel Bolognesi
pela Libertadores.
As transformações na figura e na
atuação do goleiro, o que inclui sua
atual indumentária colorida, não raro espalhafatosa, em substituição ao
preto básico que predominou até os
anos 60, estariam ligadas, entre outras coisas, ao processo de liberação
feminina a partir da década de 70.
Repito aqui o que já disse uma vez:
essa associação do goleiro ao feminino não tem nada a ver com o grau de
virilidade dos atletas que atuam na
posição, muitos deles galãs cobiçados pelas mulheres (Raul, Ado,
Leão, Júlio César etc., para ficar entre os brasileiros).
De Barbosa, condenado injustamente pela derrota na final da Copa
de 50, a Castilho, que amputou um
dedo para poder se recuperar de
uma contusão a tempo de disputar
um clássico pelo Fluminense e que
anos depois se suicidou pulando de
um edifício, a história dos goleiros
está repleta de seres trágicos, intensos, misteriosos e, por vezes, incompreensíveis -como as mulheres.
jgcouto@uol.com.br
Texto Anterior: Alcoólico: Camarotes em SP têm bebida Próximo Texto: Abandonado, Bahia revê boa fase dentro de campo Índice
|