São Paulo, sábado, 26 de abril de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

O guardião do quintal

No dia do goleiro, cabe uma reflexão sobre o papel desse ser singular e diferente de todos os outros no futebol

POUCA GENTE sabe, mas hoje é o dia do goleiro, data instituída em 1983 para homenagear o célebre Manga, pernambucano que pendurara as chuteiras no ano anterior, aos 45 anos, depois de ter defendido inúmeros clubes pelo Brasil afora e no exterior, com destaque para o Botafogo carioca e o Internacional gaúcho.
Muito já se falou e escreveu sobre o goleiro, esse ser solitário, diferente de todos os outros jogadores em campo. Pelo fato de pegar a bola com as mãos e defender um espaço "doméstico" que remete ao quintal ou à cozinha, o goleiro foi freqüentemente associado ao universo feminino.
O filósofo alemão Walter Benjamin chegou a compará-lo "à fêmea que defende o seu ninho com os filhotes". Estou chupando descaradamente essa citação de um livro espetacular que está ainda para ser lançado "Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil" (Companhia das Letras).
Seu autor, José Miguel Wisnik, que é músico, compositor e professor de literatura na USP, dedica um capítulo luminoso ao assunto.
"O goleiro é sabidamente um ser de exceção, e, nos momentos cruciais, um solitário. Como os indivíduos sagrados e malditos, ele pode o que os outros não podem (tocar a boca com as mãos) e não pode o que os outros podem (atravessar todo o campo e consumar o desejo maior do jogo, o gol)", afirma Wisnik.
O caráter de bode expiatório do goleiro fica patente nas transmissões de rádio. Havia em alguma emissora uma vinheta, a cada vez que saía um gol: "Vai buscaaar". Um locutor dizia, com evidente satisfação sádica: "Essa não deu, Gilmar". Outro: "Manda pro centro, Waldir."
Talvez por isso a figura seja tão lírica e trágica. Foi, vale lembrar, a posição em que atuaram escritores originais, "outsiders", como Vladimir Nabokov e Albert Camus.
A analogia do goleiro com o lugar do feminino, com sua defesa da cidadela/virgindade, vem sendo relativizada nos últimos tempos. O tabu que impedia o goleiro de sair jogando com os pés já perdeu muito da sua validade. Depois de Chilavert e Rogério Ceni, fazer gols já não é privilégio dos jogadores de linha. O mais novo membro do clube é o jovem Bruno, do Flamengo, que na última quarta-feira fez um golaço de falta contra o Coronel Bolognesi pela Libertadores.
As transformações na figura e na atuação do goleiro, o que inclui sua atual indumentária colorida, não raro espalhafatosa, em substituição ao preto básico que predominou até os anos 60, estariam ligadas, entre outras coisas, ao processo de liberação feminina a partir da década de 70.
Repito aqui o que já disse uma vez: essa associação do goleiro ao feminino não tem nada a ver com o grau de virilidade dos atletas que atuam na posição, muitos deles galãs cobiçados pelas mulheres (Raul, Ado, Leão, Júlio César etc., para ficar entre os brasileiros).
De Barbosa, condenado injustamente pela derrota na final da Copa de 50, a Castilho, que amputou um dedo para poder se recuperar de uma contusão a tempo de disputar um clássico pelo Fluminense e que anos depois se suicidou pulando de um edifício, a história dos goleiros está repleta de seres trágicos, intensos, misteriosos e, por vezes, incompreensíveis -como as mulheres.


jgcouto@uol.com.br


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