São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2008

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Entrevista - João Havelange

Maior cartola da história diz que salvou até preso político

Aos 92, presidente de honra da Fifa revela bastidores da bola e da política 30 anos após sua 1ª Copa, em 1978

Ele não é John Lennon, mas diz ter imaginado um mundo melhor. ""Se a ONU fosse como a Fifa, não viveríamos o que estamos vivendo. Não há repartição de riqueza, não eliminam a tristeza no mundo, me cortou o coração ver crianças abandonadas no mundo." João Havelange se orgulha de ter expandido a Fifa. "Quando estive lá, eram 186 países. Fui a todos pelo menos três vezes. Nenhum político fez isso. Se tivessem feito, o mundo não estava como está", gaba-se o dirigente.

 

RODRIGO BUENO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

João Havelange, 92, fala de Copas, desde a de 1958 até algumas ""armadas" e a de 2014.
 

FOLHA - Qual é seu maior orgulho?
JOÃO HAVELANGE -
Dar ao Brasil a Copa de 58, que a era o que mais o povo do Brasil desejava.
Perdemos em 30, 34, 38, 50 e 54. Ganhamos em 58 e 62, perdi em 66, não me ausentei, e ganhamos a de 70. Em 74, fui eleito [Fifa]. Era demais ser eleito e ganhar a Copa, cortaram-me todo o capim embaixo dos pés.

FOLHA - O Brasil foi prejudicado na Copa-74? Houve armação na Copa?
HAVELANGE -
Em 66, o Brasil tinha praticamente o mesmo time de 62. Quem era o presidente da Fifa? Sir Stanley Rous, inglês. Onde era a Copa? Inglaterra. Nos meus três jogos, com Portugal, Hungria e Bulgária, tinham 3 árbitros e 6 bandeirinhas. Sete eram ingleses e dois alemães. Acha que foi para quê? Acabar com meu time. Acabaram. Pelé foi machucado. Em uma homenagem depois, estava Stanley Rous. Me estendeu a mão e não o cumprimentei. Ele disse "o que você tem?". Eu disse "faça um exame de consciência, você tem a resposta". A Alemanha jogou com o Uruguai, e o árbitro era inglês. A Argentina jogou com a Inglaterra, e o árbitro era alemão. Qual foi a final? Inglaterra e Alemanha. Por que só tinha árbitro alemão e inglês nos meus jogos? Em 74, na Alemanha, também. O senhor não acha estranho? E te pergunto: a Inglaterra voltou a ser campeã ou ganhou alguma coisa? Não, então pronto.

FOLHA - O senhor afirma mesmo então que houve interferências a favor dos times da casa em 1966 e 74?
HAVELANGE -
Exatamente.

FOLHA - Nos títulos que perdeu...
HAVELANGE -
Fui à Alemanha [1974], acabava de ser eleito [Fifa], faço um jogo Holanda x Brasil. A Holanda vinha com problema de petróleo, sem petróleo porque tinha subido muito, e andavam de bicicleta. Nunca me esqueço. Quem tinha ido regularizar essa situação foi o [Henry] Kissinger [diplomata americano de grande atuação nos anos 60 e 70]. Ele chegou ao estádio para ver Brasil x Holanda, e o Stanley Rous me botou o [árbitro Kurt] Tschenscher, da Alemanha, que já tinha 50 anos e apitou o último jogo da carreira. E me jogou para córner. Perdi de 2 a 0. Suspenderam meu central [Luis Pereira, expulso contra a Holanda] para a disputa de terceiro com a Polônia. Puseram um árbitro [Aurelio Angonese, da Itália], um jogador meu pegou a bola no meio, foi agarrado na camisa quando entrava na área para fazer o gol. Apitou, fez a barreira e perdi de 1 a 0.

FOLHA - E em 1978, a Copa na Argentina do presidente Videla? Houve armação nesse Mundial?
HAVELANGE -
Nada disso. Se você veio tratar de política, não aceito. Quando cheguei à Fifa, quem decidiu que a Copa ia ser na Argentina não fui eu nem o Comitê Executivo. Foi o Congresso [da Fifa], e você não pode mudar uma decisão do Congresso. Pode falar o que quiser. Eu só apertei o governo anterior, que era da senhora do Perón [Isabelita]. Fui a ela, depois ela caiu. Faltavam dois anos para a Copa. Fui ver o presidente Videla, não o conhecia. Ele me disse: "Senhor Havelange, não vou lhe dar a melhor Copa, mas vou lhe dar uma das melhores, pode estar certo". E fez tudo.

FOLHA - O senhor era conhecido de Paulo Paranaguá [cujo filho homônimo acabou preso na Argentina como um militante de esquerda]?
HAVELANGE -
Sim, muito, ele faleceu. A senhora dele ainda é viva, era filha do ex-presidente do Fluminense Antônio Leite. Ele [Paulo pai] foi embaixador no Kuait. Eles tinham um filho que se meteu naquela questão de revolução na Argentina. O Antônio Leite, pai da Glorinha, chegou ao meu escritório e disse: "O meu neto foi preso na Argentina, a Glorinha já foi lá não sei quantas vezes e não consegue falar com ele, ela está com medo". Eu disse: "Faço futebol, sou administrador de uma entidade, não sou político". Ele: "O senhor faz isso para mim. É meu neto. E começou a chorar". Isso me doeu muito, e disse: "Estou saindo para o Oriente. Quando voltar, em vez de vir ao Brasil, desço em Lima e vou a Buenos Aires". Assim fiz.

FOLHA - E aí negociou a libertação do Paulo [como diz Pablo Llonto, autor do livro "A Vergonha de Todos", sobre a Copa de 1978]?
HAVELANGE -
Cheguei e pedi audiência com o presidente Videla. Expliquei a ele e disse: "Se o senhor acha que estou me intrometendo, ponha-me para fora, não me atenda, e eu o respeitarei da mesma maneira". Chamou o general Viola por telefone e disse: "O doutor Havelange vai aí lhe falar e veja tudo o que pode fazer". Saí do gabinete e fui ao general Viola, décimo andar. O general me abre a porta do elevador. Entrei e falei do que se tratava. Chamou o coronel. "Verifica o caso desse rapaz e me ponha a par." E assim o fez. Era novembro, e disse ao Antônio Leite o que tinha feito. A Glorinha pensava que o filho já estava... No princípio de janeiro, saí de Concorde para Paris. Quando ia fechar a porta do avião, entrou um sujeito da Polícia Federal e me disse: "Doutor Havelange, acabaram de telefonar de Buenos Aires. Mandaram avisar que a pessoa que o senhor pediu já está em Buenos Aires e amanhã já estará em um avião da Air France, como o senhor determinou, a destino de Paris. Esse rapaz vive hoje em Paris, é o filho de Paranaguá.

FOLHA - Não foi estranha a goleada de 6 a 0 da Argentina em 1978?
HAVELANGE -
Não tenho nada a ver, mas dias antes o Brasil jogou com o Peru. Fui ao vestiário e disse que precisava ganhar de muito para ter saldo de gols. Ficaram o tempo passando a bola: 3 a 0. E não se esqueça: o time do Peru estava na terceira Copa, todos tinham mais de 30 anos. Não faziam tecnicamente um jogo bonito, e eficiência física nenhuma. Quando o Brasil jogou com a Argentina, fui ao vestiário e disse que precisávamos ganhar o jogo para sermos campeões. Disseram-me que iam jogar pelo empate. Lembre-se de que o Rivellino não entrou em campo. Empatamos. O Peru jogou e, se o senhor vir o filme do jogo, com dez minutos botou uma na trave. Se entra, tinha ganho de 10 a 0. O time do Peru não tinha perna para jogar. Todo mundo agora só fala em política, nisso e naquilo, e não é nada disso. A Argentina tinha um bom time, ganhou da Holanda, e vou lhe dizer mais: a Holanda se portou muito mal naquela Copa. Era a minha primeira na presidência, e a Fifa fazia um jantar onde entregava prêmios aos quatro times finalistas. Houve o banquete e, às 21h, cheguei com minha senhora. O presidente já estava lá, 22h, 22h30, e nada da Holanda chegar. Estavam lá o time do Brasil, da Itália, da Argentina, e a Holanda chegou às 23h, o time de macacão. Disse ao presidente: "Se o senhor quiser, não haverá jantar, o senhor pode se levantar que sairei com a minha senhora". Ele: "Não, eu espero até o final". Nunca mais houve jantar na minha administração. Time que ganhava subia na tribuna, eu dava a medalha e ia embora. Não vou a campo, você nunca sabe a reação do público. Na tribuna, ninguém mexe com você.

FOLHA - O senhor está bastante envolvido na campanha do Rio para ter a Olimpíada-2016, não?
HAVELANGE -
Não estou envolvido, é que sou membro do COI, decano. Estou lá por eleição há 45 anos. E naturalmente me dou com a maioria dos membros, são 115. Mudou muita gente, mas ainda tenho uma penetração e espero trabalhar pelo Rio, que pode trazer os Jogos para o Brasil. Estarei feliz se isso acontecer e, se Deus me der a vida no dia dos Jogos, terei exatamente cem anos.

FOLHA - Acha que sua influência pesará a favor do Rio?
HAVELANGE -
É mais difícil. Primeiro, tem país da Europa [Espanha/Madri], da Ásia [Japão/ Tóquio] e do continente americano [EUA/Chicago]. Mandarei carta aos 115 [membros]. Tenho todos os votos dos árabes, são meus amigos, da África, alguns da Ásia e da Europa. Vamos ver o que posso fazer.

FOLHA - E a Copa-2014 no Brasil? O país pode fazer uma boa Copa?
HAVELANGE -
Sem dúvida, e vai fazer. O Ricardo [Teixeira, presidente do comitê organizador da Copa-2014] vai fazer algo de formidável. Escolheu como presidente do conselho administrador o Carlos Langoni, que foi presidente do Banco Central, sujeito inteligente. Já tem firmas nos EUA que devem estar interessadas. Pode ter certeza de que vamos ter uma Copa excepcional. Hoje [segunda] estive com o presidente [Luiz Inácio Lula da Silva], e ele me disse: "Tudo o que for possível, nós vamos fazer. Vamos rever todos os aeroportos, tudo o que for necessário para que a Copa seja um primor. E os Jogos também, se os recebermos".

FOLHA - O que acha da administração de Blatter, seu sucessor na Fifa?
HAVELANGE -
Ele deu continuidade. Como tem recursos, também fez projetos. Fez o Goal. Em todas as federações, fez uma sede e um campo. Quem não precisava, ganhou outra coisa. E fez outras coisas fantásticas. Fiz meu presidente. O [Lennart] Johansson [ex-presidente da Uefa] não gostou. Foi eleito, reeleito e será reeleito até 2015. Aí terá 80 anos e, se não quiser mais, disse a ele: "Difícil na vida não é chegar, é saber sair. Tem que sair bem".

FOLHA - O que acha de a Fifa ser presidida por um ex-jogador, como Beckenbauer ou Platini?
HAVELANGE -
Se for, primeiro vai ser presidida pelo Ricardo [Teixeira, presidente da CBF]. Depois, vai ser o Platini. Já não estarei vivo. Ele é excepcional, é inteligente, tive admiração por esse rapaz na Copa de 98.


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