São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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O dia seguinte

Após despontar na Febem, talentos deixam o esporte

Jovens promessas que brotaram na instituição relatam as dificuldades para seguir adiante como atleta profissional

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Imagens de atletas brasileiros comemorando títulos provocam reações paradoxais em Thiago de Paula Souza.
Por um lado, ele se sente feliz ao lembrar que o esporte o ajudou a encontrar um novo caminho, bem diferente do que trilhou no passado.
Por outro, desperta mágoa, uma sensação de que ele também poderia estar com taças na mão ou medalhas no peito se tivesse oportunidades.
Souza praticou atletismo e chegou a correr os 100 m em 10s90. A marca, obtida em 2003, superava o índice mínimo estabelecido para postulantes a uma vaga nos Jogos Pan-Americanos daquele ano, na República Dominicana.
Mas o atleta não disputou a competição. Pouco antes do torneio, desistiu do esporte.
Não encontrava patrocínios e precisava de dinheiro. Resolveu trabalhar. O principal entrave, argumenta, era o nome do local em que aprendeu a correr. Ele é ex-interno da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, a popular Febem.
No período em que ficou detido por participar como cúmplice de um assalto em São Paulo, entre 2000 e 2001, Souza tomou gosto pelas pistas.
"Treinei bastante e vi que tinha futuro", relata. "Quando saí, percebi que empresas não queriam colocar a marca num cara que passou pela Febem. Não adianta esconder. Isso é horrível", diz o ex-atleta de 23 anos, que hoje trabalha como auxiliar de escritório.
Longe de ser exceção, seu caso ilustra um cotidiano comum nos subterrâneos do esporte.
A Febem oferece oportunidade para a prática de ao menos dez modalidades para os mais de 5.590 internos. Como muitos nunca tiveram a chance de se dedicar a tais atividades anteriormente, talentos espocam.
O problema ocorre fora da instituição, quando é preciso buscar o profissionalismo nas pistas, campos e piscinas.
"Qualidade como jogador não é o meu problema. Posso ir longe no futebol. Mas perdi a paciência. Os times sabem de onde a gente vem. Para reverter isso, só com um empresário", afirma Herbert dos Santos, 20, atualmente desempregado.
Após cumprir pena duas vezes por roubo, ele disputou um torneio no Rio para adolescentes de sua faixa etária.
Chegou ao título e conseguiu impressionar Zé Maria, ex-lateral-direito que defendeu o Corinthians e a seleção brasileira na década de 70.
Com o novo padrinho, peregrinou por clubes em busca de uma chance como profissional. Visitou ao menos cinco equipes. Nada conseguiu.
"Existe um preconceito danado com essa molecada. É um negócio silencioso, que ninguém tem coragem de dizer. O problema é que são esses rapazes que mais precisam de uma chance", afirma o ex-lateral.
Histórias correlatas surgem em diversas modalidades.
Vice-presidente da Federação Paulista de Xadrez, José Alberto dos Santos até hoje lamenta a perda de um prodígio.
Após acompanhar triunfos de um menor em um torneio da Febem, cinco anos atrás, o dirigente carregou o garoto para uma disputa exterior.
Importante: o enxadrista era analfabeto. Mesmo assim, venceu partidas contra rivais que potencializavam seus conhecimentos com auxílio de livros, prática comum no esporte.
"Você percebe que um cara é talentoso pela forma como ele olha para o tabuleiro. Esse rapaz pensava o jogo, antevia as ações. Era muito impressionante", recorda o dirigente.
Porém, ao conquistar sua liberdade, o jovem não conseguiu prosseguir na atividade.
Seu paradeiro é hoje desconhecido. Ao menos, informa a Febem, ele não engordou a estatística dos que voltam a cometer delitos -29% dos internos são reincidentes.
"Não pensamos em formar campeões, e sim na possibilidade de ensinar valores com o esporte", afirma Berenice Giannella, presidente da instituição.
Ela relata que ex-internos são assistidos por até seis meses após a libertação. Depois, pouco pode ser feito.
"Alguns conseguem virar profissionais, mas são muitos os que desistem. São pessoas que precisam reconstruir a vida. O esporte é um caminho, ensina disciplina, faz com que muitos arrumem empregos e não voltem mais a errar. Só que o fardo de ter vivido na Febem é pesado para quem quer ser atleta. Patrocinadores, às vezes, fogem", afirma Giannella.
Por isso, situações como as vividas pelos menores Carlos e João Paulo (nomes fictícios) no interior de São Paulo são tão festejadas. Condenados, respectivamente, por tráfico de drogas e roubo, ambos começaram a praticar handebol na unidade da Febem de Ribeirão Preto (a 314 km de São Paulo).
A habilidade na quadra chamou atenção da prefeitura local, que fez uma proposta aos internos. Se quiserem, ambos podem atuar no time profissional da cidade em 2007.
"É claro que aceitamos o convite", afirma Carlos.
Seu colega João Paulo é ainda mais contundente: "Cresci achando que só as drogas podiam me levar a algum lugar. Agora, descobri esse lance de esporte. Sei que sou bom, que tenho uma chance. E vou agarrá-la de qualquer jeito".


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