São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

Estranhos frutos


Michael Jackson, assim como Pelé, foi um alto representante da cultura negra nas Américas

O QUE MICHAEL Jackson tem a ver com o futebol? Aparentemente nada. Em sua milionária redoma, é provável que o astro pop nem soubesse o que vem a ser um escanteio. Quando muito, sabia vagamente quem era Pelé.
No entanto esses dois, Michael Jackson e Pelé, têm mais em comum do que parece. E não falo do fato de ambos serem celebridades planetárias, mas sim de serem frutos diferentes de uma mesma imensa árvore genealógica, de um mesmo movimento amplo da história.
O escritor argentino Jorge Luis Borges começa assim o seu livro "História Universal da Infâmia", de 1935: "Em 1517 o padre Bartolomé de las Casas teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos 5º a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos infinitos fatos".
E Borges passa a enumerar consequências gloriosas ou infames da migração forçada de negros africanos para as Américas: "O tamanho mitológico de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra de Secessão (...), o moreno que Martín Fierro assassinou, a deplorável rumba "El Manisero" (...), o candomblé".
Poderíamos acrescentar: o blues, o jazz, o soul, o samba, a salsa, o basquete americano e... o futebol brasileiro. Pelé, Michael Jackson, James Brown, Michael Jordan e um punhado de outros podem ser vistos como os mais refinados exemplos do que essa mistura de culturas foi capaz de produzir ao longo dos séculos.
Expoentes todos eles de uma inigualável inteligência do corpo, um jeito de estar no mundo que pressupõe a transfiguração de um legado de dor em expressões de prazer, de alegria, de gozo.
Quantas gerações de escravos e semiescravos, quanto sangue, suor e lágrimas foram necessários para plasmar um gol de Pelé, uma "bandeja" de Michael Jordan, um número de dança de Michael Jackson.
Pouco importa que Jackson tenha embranquecido a pele, alisado o cabelo e suavizado os traços do rosto para se distanciar, talvez, da imagem do pai que o espancava e tiranizava na infância. Pouco importa que tenha concentrado em si, exacerbando-as, todas as loucuras do tempo esquisito em que vivemos. Poderia até se pintar de verde. Seguiria sendo um grande artista negro.
A canção "Strange Fruit", imortalizada na voz de Billie Holiday, dizia que "as árvores do Sul ostentam estranhos frutos", que nada mais eram que negros enforcados. Mas as árvores da América, irrigadas pelo sangue de negros, brancos e índios, geraram também frutos sublimes. A arte de Michael Jackson foi um deles.

Manchetes
Para quebrar a solenidade do texto acima, aqui vão algumas manchetes que os leitores me mandaram. De um jornal espanhol depois da derrota da "Fúria" para os EUA:
"No, we can't". De "O Globo", depois de Brasil 3 x 0 Itália: "Assurra".
E a melhor, do saudoso "Notícias Populares" nos anos 80: acima de uma foto de Maradona nu, revelando suas, digamos, limitações: "Bom de bola, ruim de taco".

jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: Saiba mais: Distúrbio se manifesta na adolescência
Próximo Texto: Com pior início, São Paulo quer sair do desconforto
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.