São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2006

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XICO SÁ

Quando os brutos também amam


Mais que o sexo, só o futebol paralisa o homem, interfere na sua vida como um deus e aniquila o machismo latino


AMIGO torcedor, amigo secador, só o futebol, mais do que o sexo e o acaso, interfere como um deus na vida do homem, congela a cena, troca a mão que apedreja pela mão que afaga, pondo pelo avesso a sabedoria do nosso primeiro punk, o assombroso Augusto dos Anjos, naquele poema do beijo como véspera do escarro. Só o futebol, mais do que a paixão e o pé na bunda, põe derretido o mais Clint Eastwood dos machos. Deixo aí pequenas histórias, pois, short cuts, como sopra aqui meu "gringo viejo", e ao final vocês me dizem se faz sentido ou não o que defendo, combinado?
Violência à mão armada, esquina da rua Costa com Bela Cintra, cinco da manhã, nem o sol por testemunha, calçada nova e já tingida com a maquiagem borrada das putas amigas, "é um assalto, porra, me leva a sério, passa o dinheiro". Toca o celular da vítima, musiquinha, o hino do São Paulo, salve o tricolor paulista...
O assaltante tira o cano da mira, abre um sorriso, pede desculpas, diz "é nóis", o caneco já ganhamos, só por azar medonho, toc-toc na madeira, ai já batem na fórmica do balcão onde bebem a aurora engarrafada, trocam confidências, recitam em uníssono "a vida é dura" com a dicção de um épico, porque "a vida é dura", se dito no tom certo, ainda é o mais perfeito dos versos, como diria meu amigo Lourenço, sábio.
O personagem acima, em carne e osso, atende pelo hiperbólico nome de Alexandre, é um dos meus garçons prediletos, que a gente molha o ombro quando a desalmada vai embora, garçom no sentido amplo do termo, aqui do meu mundo, da geografia afetiva do Baixo Augusta. Só o futebol, mais do que o luxo da coragem assassina, toma a alma de um homem como um tufão leva destinos de um navio de Conrad, sabe aquele cheio de chineses com tempestades tatuadas na pele?
Repare, sem viadagem ou perobices, como um homem abraça outro depois de ver a bola beijar a rede. Gesto nobre que aniquila o machismo mais latino, que leva os homens a um afeto nada costumeiro.
Minha amiga Karina fotografa o marido no estádio, para sacaneá-lo, digo, mostrar o amor dele pelos semelhantes corintianos, queria que vocês vissem as fotos, cada abraço, cada amasso, ela me disse -haja sacanagem com o cara!- que nem mesmo na alcova o alvinegro a pega com tanta violência e ternura.
Lembrei de Almodóvar, "Carne Trêmula", quando o rapaz da cadeira de roda trava uma luta mortal com o inimigo, pau puro, round decisivo, aí sai um gol do Atlético de Madri na TV, e então, como se nada houvera, os machões espanhóis se abraçam enternecidos, quase lânguidos nas suas durezas guardadas.
Mais um episódio. Quando certa manhã Sérgio Sant'Anna acordou de sonhos intranqüilos, depois de mais uma rodada do Brasileiro, viu que manchas negras, em forma de corvos agourentos, haviam pousado sob a sorte e os seus olhos.
Sim, amigos, o maior escritor brasileiro vivo, vivíssimo, tricolor das Laranjeiras roxo, teve um pesadelo, a queda do Fluminense para a segundona, e amanheceu outro no espelho. Isso acontece, ele me disse.
Não se espantem, cariocas, se o virem no Largo do Machado, lencinho na mão, e sempre de óculos escuros, para as suas lágrimas esconder dos flamenguistas mais chatos.
Só o futebol, não as novelas, paralisa os homens. E que as fêmeas folhetinescas me desculpem, mas não faz sentido essa inversão das coisas, o futebol ter que obedecer às fajutas "Páginas da Vida". Ridículo que um clássico, na quarta, seja às dez da noite, para testemunhas que irão chegar em casa na madruga. O torcedor tem que fazer greve, não ir mesmo aos estádios, enquanto o drama da Globo não for rebaixado.
Primeiro o jogo, o resto são lágrimas que mancham braços de sofás.

xico.folha@uol.com.br


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