São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

O que não tem preço


Para além dos negócios e interesses materiais, o futebol propicia a cada indivíduo uma rede de relações afetivas

NESTA ÉPOCA do ano em que o noticiário futebolístico poderia sair no caderno de economia (Fulano foi comprado por tantos euros, Beltrano renovou por não sei quantos reais), resolvi escrever sobre aquilo que tem menos a ver com o comércio: o afeto.
Afeto, que fique claro, não no sentido limitado de ternura ou carinho, mas na acepção, prevista pelo Houaiss, de "sentimento ou emoção em diferentes graus de complexidade, por exemplo, amizade, amor, ira, paixão etc.". Se você odeia alguém, não pode dizer que não lhe tem nenhum afeto.
O afeto tem tudo a ver com o futebol. Não só porque amamos um time e detestamos outros, não só porque vibramos com a seleção do nosso país, mas também e principalmente pela rede de relações sentimentais que se tece em torno do futebol.
Há um livro exemplar sobre isso, "Febre de Bola", do escritor inglês Nick Hornby. Nessas suas memórias de torcedor do Arsenal, ele acaba falando da relação com o pai, com as namoradas, com os amigos, com a cidade, com o mundo. Cada um de nós, apaixonados por futebol, poderia escrever um livro similar.
O meu começaria, decerto, com a primeira vez que meu pai me levou a uma partida, na garupa da sua bicicleta. Corinthians contra um adversário que não me lembro. O Morumbi ainda não tinha o anel superior e meu pai era pobre, de modo que assistimos ao jogo sentados num morro ao lado do estádio.
Eu tinha seis anos e não consegui prestar atenção à partida em si. Estava mais impressionado com o número de pessoas na arquibancada e de automóveis em torno do estádio.
Mas, pelo clamor da torcida e pela vibração de meu pai, percebi que aquela era uma experiência intensa, um grande acontecimento.
Meu pai morreria pouco mais de um ano depois, me deixando de herança a memória daquela tarde iniciática e o fascínio por aquele jogo que eu ainda não compreendia.
Tanta gente veio depois na esteira dessa paixão: os companheiros de time e de arquibancada, os mestres e colegas de ofício, as namoradas pacientes e não raro cúmplices, meu filho Lucas que me acompanhou em tantas tardes e noites no Pacaembu, no Morumbi, na Ressacada, os leitores fiéis que ajudam com informações e idéias a fazer esta coluna, o pessoal da eterna Máquina Vermelha, que me ensinou que futebol pode ser outro nome da amizade...
Tudo isso sem falar dos craques, dos músicos, poetas, historiadores e filósofos a quem não tive a ocasião de conhecer pessoalmente, mas de quem me sinto próximo como um irmão por terem em algum momento batido bola comigo, mesmo que sem saber.
Toda essa gente está comigo aqui e agora, nesta antevéspera de Ano Novo. Enquanto outros contabilizam perdas e lucros e planejam os negócios mais rentáveis para a próxima temporada, nós celebramos o afeto, a comunhão, o minuto, o milênio.
Se alguém está estranhando este transbordamento sentimental, quiçá piegas, tenho uma boa desculpa.
Como o poeta Drummond, que compreendeu tão bem o sentido humano do futebol, eu não devia lhes dizer, "mas esta lua, mas este conhaque, botam a gente comovido como o diabo".

jgcouto@uol.com.br


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