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O fim da infância
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ah, época de Copa do Mundo
é fogo... Daqui a exatos 43 dias
muitos meninos e meninas em
todo o mundo terão deixado de
ser crianças antes da hora.
Copas do Mundo são especialistas nisso, em antecipar as
coisas. Eu mesmo vi minha infância se escafeder num átimo:
foi em 5 de julho de 1982. Quando Brasil e Itália começaram a
jogar eu ainda era um moleque
de 14 anos. No final da partida
já havia nascido uma barba cerrada na minha cara, chegava
quase no peito. E enquanto minha infância entrava no túnel
do vestiário e desaparecia para
sempre junto com Zico, Sócrates e turma, eu arrancava o meu
primeiro fio de cabelo branco.
O problema de ser jogado na
vida adulta desse jeito, sem vaselina ou KY nenhum, é que a
gente fica meio cético. Não só
no que se refere a futebol mas
em relação a tudo. Por exemplo, quando me casei e o padre
perguntou à minha noiva se ela
se casava por livre e espontânea
vontade, ela disse que sim, mas
eu que sou cético não acreditei
muito, e murmurei um "mas" é
SIM de verdade?" que arrancou
risos dos padrinhos. E quando
minha filha nasceu e a colocaram em minhas mãos pela primeira vez fiquei com um verdadeiro circo de pulgas atrás da
orelha e perguntei à enfermeira: "Tem certeza de que é a minha filha mesmo, né? Não é
possível que vocês tenham se
enganado de bebê, não é mesmo?".
Tudo culpa da Copa.
E não é só comigo que é assim, mas com o Delei, com o
Ary, com o Xandão, meus amigos do tempo do colégio: todos
céticos de carteirinha que duvidam até da própria mãe. Absoluta e irrevogável culpa da Copa
de 1982, tudo por conta de nossa infância surrupiada antes da
hora. Para você fazer idéia:
quando ouvimos os comentários do Falcão naqueles jogos
de futebol, eu, o Delei, o Ary e o
Xandão tapamos os ouvidos. E
quando o Zico promete mundos e fundos dizendo que a seleção japonesa vai fazer barba e
cabelo, sushi e sashimi na Alemanha, eu, o Delei, o Ary e o
Xandão pensamos que os japoneses deveriam mais é abrir os
olhos, se pudessem. Promessas
de Zico nunca mais, entoamos
em coro. Daquela trupe de 82 o
único que merece algum crédito é o Arnaldo César Coelho. E
só porque ao apitar a final entre
Itália e Alemanha ele nos deu
um gostinho esquisito na boca
que nós, ingênuos que éramos,
confundimos com felicidade.
Por outro lado a molecada de
hoje em dia vê sua infância correr risco de extermínio bem antes da Copa do Mundo ter início. Sim, pois antigamente
eram as crianças as encarregadas de decorar as ruas dos bairros, as calçadas, a pintar os muros com os nomes dos jogadores. Hoje quem decora as ruas
são os bancos e as companhias
telefônicas. Qual a necessidade
de meninos e meninas decorarem a rua se para onde olhamos
vemos pôsteres e outdoors de
Ronaldos e Robinhos? Não tenho certeza se a seleção brasileira é o time dos sonhos das
crianças, mas dos publicitários
certamente ela é. E que sonhos
cheios de cifrões.
Pensando bem, até que tive
uma infância feliz.
Joca Reiners Terron, 38, é escritor, mato-grossense, são-paulino doente e torce pelo Paraguai na Copa. Autor do "Curva de Rio Sujo" (ed.
Planeta). Em agosto, lança "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).
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