São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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O fim da infância

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ah, época de Copa do Mundo é fogo... Daqui a exatos 43 dias muitos meninos e meninas em todo o mundo terão deixado de ser crianças antes da hora.
Copas do Mundo são especialistas nisso, em antecipar as coisas. Eu mesmo vi minha infância se escafeder num átimo: foi em 5 de julho de 1982. Quando Brasil e Itália começaram a jogar eu ainda era um moleque de 14 anos. No final da partida já havia nascido uma barba cerrada na minha cara, chegava quase no peito. E enquanto minha infância entrava no túnel do vestiário e desaparecia para sempre junto com Zico, Sócrates e turma, eu arrancava o meu primeiro fio de cabelo branco.
O problema de ser jogado na vida adulta desse jeito, sem vaselina ou KY nenhum, é que a gente fica meio cético. Não só no que se refere a futebol mas em relação a tudo. Por exemplo, quando me casei e o padre perguntou à minha noiva se ela se casava por livre e espontânea vontade, ela disse que sim, mas eu que sou cético não acreditei muito, e murmurei um "mas" é SIM de verdade?" que arrancou risos dos padrinhos. E quando minha filha nasceu e a colocaram em minhas mãos pela primeira vez fiquei com um verdadeiro circo de pulgas atrás da orelha e perguntei à enfermeira: "Tem certeza de que é a minha filha mesmo, né? Não é possível que vocês tenham se enganado de bebê, não é mesmo?".
Tudo culpa da Copa.
E não é só comigo que é assim, mas com o Delei, com o Ary, com o Xandão, meus amigos do tempo do colégio: todos céticos de carteirinha que duvidam até da própria mãe. Absoluta e irrevogável culpa da Copa de 1982, tudo por conta de nossa infância surrupiada antes da hora. Para você fazer idéia: quando ouvimos os comentários do Falcão naqueles jogos de futebol, eu, o Delei, o Ary e o Xandão tapamos os ouvidos. E quando o Zico promete mundos e fundos dizendo que a seleção japonesa vai fazer barba e cabelo, sushi e sashimi na Alemanha, eu, o Delei, o Ary e o Xandão pensamos que os japoneses deveriam mais é abrir os olhos, se pudessem. Promessas de Zico nunca mais, entoamos em coro. Daquela trupe de 82 o único que merece algum crédito é o Arnaldo César Coelho. E só porque ao apitar a final entre Itália e Alemanha ele nos deu um gostinho esquisito na boca que nós, ingênuos que éramos, confundimos com felicidade.
Por outro lado a molecada de hoje em dia vê sua infância correr risco de extermínio bem antes da Copa do Mundo ter início. Sim, pois antigamente eram as crianças as encarregadas de decorar as ruas dos bairros, as calçadas, a pintar os muros com os nomes dos jogadores. Hoje quem decora as ruas são os bancos e as companhias telefônicas. Qual a necessidade de meninos e meninas decorarem a rua se para onde olhamos vemos pôsteres e outdoors de Ronaldos e Robinhos? Não tenho certeza se a seleção brasileira é o time dos sonhos das crianças, mas dos publicitários certamente ela é. E que sonhos cheios de cifrões.
Pensando bem, até que tive uma infância feliz.


Joca Reiners Terron, 38, é escritor, mato-grossense, são-paulino doente e torce pelo Paraguai na Copa. Autor do "Curva de Rio Sujo" (ed. Planeta). Em agosto, lança "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).


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