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Regime de servidão
ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
especial para a Folha
A reportagem, ontem publicada pela Folha, coloca a nu
aquilo que se critica a respeito
do "passe", vínculo que submete o profissional do futebol
a clube ou empresário, com visível prejuízo de direitos assegurados pela Constituição, Código Civil e CLT.
A lei que mancha nosso ordenamento jurídico é a de nš
6.354/76, cujo art. 11 define
passe como "a importância
devida por um empregador a
outro, pela cessão do atleta
durante a vigência do contrato
ou depois do seu término, observadas as normas desportivas pertinentes" e concede
passe livre aos 32 anos de idade e dez de serviço efetivo ao
último empregador.
Que os clubes pretendam reparação financeira pela transferência na vigência do contrato, embora contrarie tudo
aquilo que normalmente se
observa em outras atividades,
daria ainda para se entender.
É absolutamente ilegítimo, porém, que, encerrado o contrato, o empregador retenha
ex-empregado, impedindo-o,
arbitrariamente, de continuar
exercendo a profissão.
Sustentam os defensores dessa estranha prerrogativa ser
necessário ao clube garantir-se
quanto aos investimentos feitos na preparação do atleta.
O argumento não resiste à
análise.
Na verdade, jogadores da estirpe de Cafu, Edmundo, Romário, Juninho, Ronaldinho,
Raí nascem, como os grandes
artistas, dotados de talento.
Ignoro algum que tenha alcançado o estrelato pelas mãos
de técnico, preparador físico,
psicólogo ou cartola.
Nilton Santos relatou, em recente crônica, haver sido surpreendido por Garrincha, a
quem foi incumbido de marcar
no primeiro treino.
Não acreditando nas pernas
tortas, levou dois dribles consecutivos, convencendo-se de
que estava diante de um milagre da natureza.
O mesmo certamente ocorreu
com Didi, Pelé, Canhoteiro,
Ademir da Guia, Tostão e milhares de outros.
Os investimentos que raros
clubes fazem destinam-se às
instalações e preparação física,
mas não produzem o craque.
Alimentando e cuidando da
saúde do adolescente vindo do
interior ou da periferia, o clube está adestrando a equipe,
dando-lhe condições para disputar 90 minutos de partida,
uma ou mais vezes por semana, todos os meses do ano.
A preparação física converte
o franzino, como no caso de
Zico, no musculoso e resistente
atleta; não lhe acrescenta, contudo, uma gota de habilidade,
malícia, visão de jogo.
Questões como a da transformação do clube em empresa,
ou da Justiça esportiva especializada, são relevantes.
O problema do passe, entretanto, é prioritário, pois se refere à humanidade e cidadania de quem fez do futebol sua
fugidia profissão, dele retirando, com pesados sacrifícios,
subsistência para si e sua família.
O Brasil ético e democrático
exige urgente reformulação da
lei que rege as relações de trabalho no futebol profissional,
eliminando-se a servidão imposta pela propriedade do passe.
Almir Pazzianotto Pinto, 61, é ministro corregedor-geral da Justiça do Trabalho
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