São Paulo, sexta, 28 de novembro de 1997.



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Regime de servidão

ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
especial para a Folha

A reportagem, ontem publicada pela Folha, coloca a nu aquilo que se critica a respeito do "passe", vínculo que submete o profissional do futebol a clube ou empresário, com visível prejuízo de direitos assegurados pela Constituição, Código Civil e CLT.
A lei que mancha nosso ordenamento jurídico é a de nš 6.354/76, cujo art. 11 define passe como "a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois do seu término, observadas as normas desportivas pertinentes" e concede passe livre aos 32 anos de idade e dez de serviço efetivo ao último empregador.
Que os clubes pretendam reparação financeira pela transferência na vigência do contrato, embora contrarie tudo aquilo que normalmente se observa em outras atividades, daria ainda para se entender. É absolutamente ilegítimo, porém, que, encerrado o contrato, o empregador retenha ex-empregado, impedindo-o, arbitrariamente, de continuar exercendo a profissão.
Sustentam os defensores dessa estranha prerrogativa ser necessário ao clube garantir-se quanto aos investimentos feitos na preparação do atleta.
O argumento não resiste à análise.
Na verdade, jogadores da estirpe de Cafu, Edmundo, Romário, Juninho, Ronaldinho, Raí nascem, como os grandes artistas, dotados de talento.
Ignoro algum que tenha alcançado o estrelato pelas mãos de técnico, preparador físico, psicólogo ou cartola.
Nilton Santos relatou, em recente crônica, haver sido surpreendido por Garrincha, a quem foi incumbido de marcar no primeiro treino.
Não acreditando nas pernas tortas, levou dois dribles consecutivos, convencendo-se de que estava diante de um milagre da natureza.
O mesmo certamente ocorreu com Didi, Pelé, Canhoteiro, Ademir da Guia, Tostão e milhares de outros.
Os investimentos que raros clubes fazem destinam-se às instalações e preparação física, mas não produzem o craque. Alimentando e cuidando da saúde do adolescente vindo do interior ou da periferia, o clube está adestrando a equipe, dando-lhe condições para disputar 90 minutos de partida, uma ou mais vezes por semana, todos os meses do ano.
A preparação física converte o franzino, como no caso de Zico, no musculoso e resistente atleta; não lhe acrescenta, contudo, uma gota de habilidade, malícia, visão de jogo.
Questões como a da transformação do clube em empresa, ou da Justiça esportiva especializada, são relevantes.
O problema do passe, entretanto, é prioritário, pois se refere à humanidade e cidadania de quem fez do futebol sua fugidia profissão, dele retirando, com pesados sacrifícios, subsistência para si e sua família.
O Brasil ético e democrático exige urgente reformulação da lei que rege as relações de trabalho no futebol profissional, eliminando-se a servidão imposta pela propriedade do passe.


Almir Pazzianotto Pinto, 61, é ministro corregedor-geral da Justiça do Trabalho



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