São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 2002

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FUTEBOL

Maria

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Hoje é dia de São Silvestre. Entre as mulheres que irão participar da prova, haverá uma chamada Maria.
Aos 12 anos, Maria já cortava cana. Mas ela queria trocar a cana pela rosa.
- Mãe, quando eu crescer quero ser igual a Rosa.
- Você quer virar flor, filha?
- Não, mãe..., quero ser igual a Rosa Motta, aquela que ganhou a São Silvestre. E semana que vem vai ter uma corrida na cidade. Posso ir?
- Mas você não tem sapato...
- Não faz mal, corro descalça.
Ela correu descalça. Na metade da prova, a favorita para vencer a prova sentiu dores e sentou no chão. Maria parou e começou a abanar a adversária. Então passaram alguns conhecidos e gritaram: "Corre, Maria, você não pode parar!". E Maria correu. Alcançou as meninas que a tinham ultrapassado e venceu a prova.
Maria começou a treinar. Todo final de tarde, ela corria pelas estradas de terra. Maria treinava todos os dias. Mesmo quando ficou grávida. Mesmo quando teve que criar o filho sozinha.
Maria treinou até que em, 19 de novembro de 2000, com 28 anos, pegou um ônibus e foi participar da Maratona de Curitiba.
- Oi, vim pegar meu número.
- Tá aqui.
- Esse número aqui não é de corredora de elite.
- Não.
- Vou sair atrás das outras?
- Claro. Você não é famosa.
Maria chorou muito, mas, mesmo assim, foi para sua posição.
Depois do tiro de largada, Maria começou a ultrapassar suas concorrentes e encostou numa atleta famosa: Hilda.
- Oi, meu nome é Maria.
- Eu sou a Hilda.
- Poxa, você é famosa. Eu só não peço o seu autógrafo porque a letra ia sair muito tremida. Bom, eu vou indo, tchau.
- Ei, espera aí, Maria! Vai devagar, senão você quebra.
- Você é quem manda.
Depois de muitos quilômetros, outra corredora passou as duas.
- Hilda, essa não é Marizete?
- É.
- Poxa, pensei que ela estivesse em primeiro.
- Agora ela está.
- Como é que é?
- A gente estava na frente.
- Sério! Vamos atrás dela!
- Calma. Faltam 5 km.
Talvez, naquela hora, tenha lembrado de seus amigos gritando: "Corre, Maria, você não pode parar". E então ela respondeu:
- Já esperei demais. Se você não vai, eu vou!
Maria acelerou e deixou Hilda para trás. Maria alcançou Marizete. Maria passou Marizete. E Maria venceu.
Ela recebeu seu troféu e um daqueles cheques de um metro e meio. Quando descia do pódio e ia embora com o enorme cheque debaixo do braço, um dos organizadores grita:
- Aonde você pensa que vai?
- Pra Sertãozinho, ué?!
- Mas e o seu cheque?
- Tá aqui.
- Esse é só um cheque simbólico, você tem que pegar o original.
- Posso ficar com os dois?
- Pode.
Depois dessa vitória, Maria ficou conhecida. E, no ano passado, Maria venceu a São Silvestre, tal qual Rosa Motta. Hoje, ela estará de novo correndo pelas ruas de São Paulo. Está se recuperando de uma contusão e tem pouca chance de vitória. Mas nunca se sabe. Ela sempre pode escutar aquela voz que diz "Corre, Maria, você não pode parar".

Marias
A Maria do texto é Maria Zeferina Balldaia, uma das maiores corredoras do país e que este ano venceu a Maratona de São Paulo. E as histórias contadas aqui (como a parada para ajudar a rival em sua primeira corrida, como a vitória em Curitiba depois de largar no pelotão de trás, como o caso do enorme cheque) são verdadeiras. Maria Zeferina Baldaia é única. Mas Maria também é igual a muitas outras Marias, Marias que parecem ter saído daquela música de Milton Nascimento que diz "Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar, e não vive apenas aguenta. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria, mistura a dor e a alegria. Quem traz na pele esta marca possui a estranha mania de ter fé na vida".

E-mail torero@uol.com.br



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