|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Alagados
COMO VIVEM OS JOVENS QUE PERDERAM TUDO NAS ENCHENTES DO NORDESTE
FÁBIO GUIBU
ENVIADO ESPECIAL A MURICI (AL)
Já pensou como seria a vida se, de uma hora para outra, uma enchente levasse
sua casa com tudo dentro?
E se, depois disso, você
ainda fosse obrigado a morar
em um galpão com 200 famílias que você nunca viu na vida, sem água e com luz na
base da gambiarra?
Pois foi isso o que aconteceu com milhares de pessoas
em Pernambuco e em Alagoas. Em junho, a chuva fez
os rios transbordarem, e a
correnteza, como um tsunami, varreu do mapa bairros
inteiros nesses Estados.
A tragédia mudou a história das famílias desabrigadas. Pais ficaram desempregados, e os filhos, acostumados à vida pacata das cidades
do interior, assumiram tarefas importantes, como buscar comida e fazer bicos. Festas e lazer nem pensar.
Garotas que só ficaram
com a roupa do corpo não se
veem no espelho há mais de
um mês. Espelhos não existem nos abrigos coletivos onde passaram a viver, em Murici (a 50 km de Maceió).
"A voz das amigas é o nosso espelho", diz a estudante
Daniela Maria de Araujo Silva, 15. "Elas vão falando, e a
gente vai se ajeitando, vendo
se o cabelo está assanhado,
se a blusa está combinando."
O máximo que conseguem, afirma Daniela, é ver
seus reflexos nos vidros dos
carros que param próximos
aos galpões. "É melhor que
olhar no espelhinho retrovisor, onde a gente só vê o olho
e o nariz", diz ela.
Ruim mesmo, diz a garota,
é tomar banho de roupa. Sem
chuveiro, o pessoal se vira no
"banho de gato" com balde e
caneca na beira da estrada,
onde foram instalados banheiros químicos e caixas
d'água para os flagelados.
"Na hora de trocar de roupa, então, tem que ficar esperta", reclama. "Os caras ficam "brechando" [espiando]
a gente no meio dos panos",
diz, referindo-se aos lençóis e
lonas plásticas que delimitam os territórios de cada família dentro dos abrigos.
SAUDADES DO BATOM
No galpão onde vivem
com suas famílias, as amigas
Daniela, Maiane Alves da Silva e Jamile Fernandes de
Moura, 13, estão sempre juntas. E compartilham uma correntinha, uma pulseira e alguns elásticos de cabelo que
sobreviveram à enchente.
"A gente tinha calça cigarrete, vestido, sapato de bico
fino, rasteirinha... Hoje, usamos roupas doadas", conta
Maiane. "Perdemos tudo. Dá
saudade de usar um batom."
Os amigos sumiram, dizem elas. A paquera dos tempos em que frequentavam a
praça Padre Cícero também
acabou. "Ninguém mais olha
para a gente, só mesmo os
bem tronchos [feios]."
Transferida há poucos dias
de um abrigo coletivo para
uma barraca individual em
Murici, Taís Rosa da Silva, 14,
prefere as amizades on-line.
"Gastei R$ 2 [em uma lan
house] e contei para o pessoal na internet o que tinha
acontecido. Eles ficaram passados", conta. "Mas ficaram
felizes porque souberam que
estou viva. É isso o que importa, não é?"
Texto Anterior: Na estrada- Mayra Dias Gomes: Colocaram o Super-Homem na cadeia Próximo Texto: Estudantes coletam doações durante as férias Índice
|