São Paulo, segunda, 3 de maio de 1999

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free way
A semana do irracional

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

O ser humano, supostamente racional, tem uma grande dificuldade de lidar com o irracional, o sem sentido. Estudos de psicologia mostram, por exemplo, que, quando mulheres são informadas do estupro de outra mulher, sua primeira reação é tentar achar um defeito, uma culpa na estuprada.
A saia estava muito curta, o decote, muito revelador, aquele bar só tem estuprador (?), enfim, qualquer coisa que possa justificar um "ela estava pedindo". As mulheres, já normalmente felinas umas com as outras, não o fazem por maldade, mas por defesa: se você admitir que a vítima de estupro não teve culpa nenhuma e não poderia ter feito nada para evitar o ocorrido, significa que você também está vulnerável e pode ser a próxima vítima.
Um estupro é algo irracional, sem sentido: pode acontecer a qualquer um e ninguém está protegido. Como essa é uma realidade dura de encarar, a mente humana, sábia em seus mecanismos de proteção, encontra uma "causa": a saia estava justa. Então, se eu não usar saia justa, estou segura. Mantida a ilusão de controle, pode-se continuar vivendo tranquilamente.
Essa estupefação com o irracional foi a tônica aqui durante a semana que passou, depois que dois jovens com cara de coroinha fuzilaram 13 crianças numa escola e então se mataram. Foi o pior massacre do gênero já visto.
Junto com as lágrimas, vieram as explicações: a culpa era da disponibilidade das armas, dos pais irresponsáveis, dos filmes que glorificam a violência, da Internet, que dissemina informações sobre como preparar bombas, etc., etc. Há que se encontrar um bode expiatório, porque a verdade é dura demais: qualquer pessoa que entra numa escola atirando a esmo é louco de pedra, é um psicopata. Contra eles, não há proteção possível.
É claro que as armas ajudam, pais relapsos facilitam e o acesso à informação torna tudo mais fácil. Todo jovem está exposto a isso, e nem todos saem por aí dando uma de Rambo. Só os loucos. O resto é conversa.
Mas a sanha do irracional ou quase também atingiu o nosso Brasil e vem rondando a figura do Chico Lopes como as moscas rondam aquilo. Sem brincadeira, quando vi a foto de um ex-presidente do BC indo para a cadeia, quase choro de felicidade. Nada pessoal, mas é que, sempre que conseguimos uma vitória contra a impunidade e a safadeza, me dá aquela esperança passageira de um dia nos endireitarmos. Acho que o meu entusiasmo foi sentido também pelos senadores da CPI, o que causa problemas. São senadores da República e deveriam se portar com comedimento e parcimônia.
Por mais que Chico Lopes possa ser culpado, sua prisão e a repercussão à sua volta são lastimáveis. Sua decisão de não assinar o termo como testemunha foi corretíssima, pois era um réu, e a Constituição lhe permite o direito de calar.
Tinha direito a advogado, mas a Emília Fernandes não deixou. Tinha direito à liberdade, segundo a grande maioria dos juristas ouvidos, mas foi mandado para o xadrez, porque dava mais publicidade aos senadores. Tinha direito a habeas corpus, mas Pedro Simon, um dos maiores democratas do país, não queria que o STF lhe concedesse. Tomado pela impulsividade típica de adolescentes apaixonados, o Senado mandou os escrúpulos às favas e tratou de imolar o seu bode expiatório, para delírio da sedenta patuléia.
Não é atropelando os direitos alheios que vai se fazer justiça nesse país. E não é prendendo Chico Lopes que se vai acabar com o âmago da questão, que é o relacionamento mais que impuro a nortear as relações do público e privado no Brasil. Nisso a CPI não mexe. ACM, com sua usual truculência, dizia que não deixaria sua "casa" ser desmoralizada. Já foi, senador.

P.S. Parabéns ao reitor Jacques Marcovitch e demais membros do conselho decisório da USP pela sensível e corajosa decisão de acabar com o trote universitário. A eles, retiro as críticas da semana passada e transformo-as em elogios. Que sirvam de exemplo.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com



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