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free way
A semana do irracional
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
O ser humano, supostamente
racional, tem uma grande dificuldade de lidar com o irracional, o sem sentido. Estudos de
psicologia mostram, por exemplo, que, quando mulheres são
informadas do estupro de outra
mulher, sua primeira reação é
tentar achar um defeito, uma culpa na estuprada.
A saia estava muito curta, o decote, muito revelador, aquele bar
só tem estuprador (?), enfim,
qualquer coisa que possa justificar um "ela estava pedindo". As
mulheres, já normalmente felinas umas com as outras, não o fazem por maldade, mas por defesa: se você admitir que a vítima
de estupro não teve culpa nenhuma e não poderia ter feito nada
para evitar o ocorrido, significa
que você também está vulnerável
e pode ser a próxima vítima.
Um estupro é algo irracional,
sem sentido: pode acontecer a
qualquer um e ninguém está protegido. Como essa é uma realidade dura de encarar, a mente humana, sábia em seus mecanismos de proteção, encontra uma
"causa": a saia estava justa. Então, se eu não usar saia justa, estou segura. Mantida a ilusão de
controle, pode-se continuar vivendo tranquilamente.
Essa estupefação com o irracional foi a tônica aqui durante a semana que passou, depois que
dois jovens com cara de coroinha
fuzilaram 13 crianças numa escola e então se mataram. Foi o pior
massacre do gênero já visto.
Junto com as lágrimas, vieram
as explicações: a culpa era da disponibilidade das armas, dos pais
irresponsáveis, dos filmes que
glorificam a violência, da Internet, que dissemina informações
sobre como preparar bombas,
etc., etc. Há que se encontrar um
bode expiatório, porque a verdade é dura demais: qualquer pessoa que entra numa escola atirando a esmo é louco de pedra, é
um psicopata. Contra eles, não
há proteção possível.
É claro que as armas ajudam,
pais relapsos facilitam e o acesso
à informação torna tudo mais fácil. Todo jovem está exposto a isso, e nem todos saem por aí dando uma de Rambo. Só os loucos.
O resto é conversa.
Mas a sanha do irracional ou
quase também atingiu o nosso
Brasil e vem rondando a figura
do Chico Lopes como as moscas
rondam aquilo. Sem brincadeira,
quando vi a foto de um ex-presidente do BC indo para a cadeia,
quase choro de felicidade. Nada
pessoal, mas é que, sempre que
conseguimos uma vitória contra
a impunidade e a safadeza, me dá
aquela esperança passageira de
um dia nos endireitarmos. Acho
que o meu entusiasmo foi sentido também pelos senadores da
CPI, o que causa problemas. São
senadores da República e deveriam se portar com comedimento e parcimônia.
Por mais que Chico Lopes possa ser culpado, sua prisão e a repercussão à sua volta são lastimáveis. Sua decisão de não assinar o termo como testemunha
foi corretíssima, pois era um réu,
e a Constituição lhe permite o direito de calar.
Tinha direito a advogado, mas
a Emília Fernandes não deixou.
Tinha direito à liberdade, segundo a grande maioria dos juristas
ouvidos, mas foi mandado para o
xadrez, porque dava mais publicidade aos senadores. Tinha direito a habeas corpus, mas Pedro
Simon, um dos maiores democratas do país, não queria que o
STF lhe concedesse. Tomado pela impulsividade típica de adolescentes apaixonados, o Senado
mandou os escrúpulos às favas e
tratou de imolar o seu bode expiatório, para delírio da sedenta
patuléia.
Não é atropelando os direitos
alheios que vai se fazer justiça
nesse país. E não é prendendo
Chico Lopes que se vai acabar
com o âmago da questão, que é o
relacionamento mais que impuro a nortear as relações do público e privado no Brasil. Nisso a
CPI não mexe. ACM, com sua
usual truculência, dizia que não
deixaria sua "casa" ser desmoralizada. Já foi, senador.
P.S. Parabéns ao reitor Jacques
Marcovitch e demais membros
do conselho decisório da USP pela sensível e corajosa decisão de
acabar com o trote universitário.
A eles, retiro as críticas da semana passada e transformo-as em
elogios. Que sirvam de exemplo.
Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA,
e-mail: desembucha@cyberdude.com
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