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Racionais fazem o retrato mais áspero de São Paulo
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Um nove nove sete depois de
Cristo.
Ponha Carlinhos Brown em seu
verdadeiro lugar: a butique. Ignore a nova obra de Caetano Veloso.
Dê o disco acústico dos Titãs para
a sua avó.
Porque é hora de concentrar
atenção no que de mais moderno,
inconformado e perturbador
existe hoje na cena musical brasileira. É hora de ouvir o novo álbum dos Racionais MC's.
"Sobrevivendo no Inferno",
este o nome do CD, traz o retrato
mais áspero possível de uma metrópole labiríntica e desigual, esta
máquina de ceifar vidas chamada
São Paulo.
Os Racionais vêm pesados como nunca- no som e nas letras.
Sua linha-mestra é aquela de praticamente 100% do hip-hop paulista, e se resume a duas palavras:
protesto e redenção.
O protesto fica patente nos títulos das músicas: "Periferia é Periferia (em qualquer lugar)",
"Qual Mentira Vou Acreditar",
"Diário de um Detento".
A idéia de redenção surge na foto da contracapa, onde os quatro
posam segurando uma Bíblia, e
nas letras que com tanta insistência tratam de tipos que querem
sair do crime, sabem que vão
morrer, mas se vêem empurrados
para a sombra por uma cruel imposição social.
A São Paulo (e, por extensão, o
Brasil) que brota de "Sobrevivendo no Inferno" não há lugar
para luas, nem estrelas; nem para
banquinhos, violões, patinhos
que fazem quém-quém.
Ela é medonha, imunda, habitada por manos maquinados, piranhas de olhos azuis e playboys
de calça Calvin Klein marcando
no farol da Rebouças com a Brasil. Faz frio, e os casais aproveitam a neblina para transar escondidos nas esquinas.
Se os bacanas não têm sossego,
muito menos os bandidos, que
ouvem uma voz chamando ao verem a própria vida "escorrer pela
escada", como na faixa "Tô ouvindo alguém me chamar".
Como o australiano Nick Cave,
os Racionais MC's são barrocos
de fim-de-século, relutantes entre ler a Bíblia e apertar o gatilho
do 38; entre não querer polícia
para encher o saco, mas ao mesmo tempo condenar o "sexo sem
limite" do mano que colou nos
brotinhos do shopping (está em
"Capítulo Quatro, Versículo
Três", a melhor música do disco,
com batida trip-hop e uma hipnótica frase de piano).
Não é preciso ser PhD em sociologia para perceber que a "mensagem" dos Racionais é, no limite, autoritária e moralista, mas
não é por esse ângulo que a banda
deve ser vista.
Os Racionais são cronistas ativos da barbárie, que acreditam na
pureza do sangue-bom da periferia e na maldade intrínseca de
quem anda com corrente de ouro
(devem ter razão).
O submundo dos cafundós
paulistanos é dominado por
emoções baratas, mas não dá espaço para representações.
É ali, no ano um nove nove sete
depois de Cristo, que reinam supremos, destilando revolta, os sacerdotes negros dos Racionais
MC's.
Álvaro Pereira Júnior, 34, é chefe de Redação
da Rede Globo em São Paulo
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