São Paulo, segunda, 3 de novembro de 1997.



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Racionais fazem o retrato mais áspero de São Paulo

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Um nove nove sete depois de Cristo.
Ponha Carlinhos Brown em seu verdadeiro lugar: a butique. Ignore a nova obra de Caetano Veloso. Dê o disco acústico dos Titãs para a sua avó.
Porque é hora de concentrar atenção no que de mais moderno, inconformado e perturbador existe hoje na cena musical brasileira. É hora de ouvir o novo álbum dos Racionais MC's.
"Sobrevivendo no Inferno", este o nome do CD, traz o retrato mais áspero possível de uma metrópole labiríntica e desigual, esta máquina de ceifar vidas chamada São Paulo.
Os Racionais vêm pesados como nunca- no som e nas letras. Sua linha-mestra é aquela de praticamente 100% do hip-hop paulista, e se resume a duas palavras: protesto e redenção.
O protesto fica patente nos títulos das músicas: "Periferia é Periferia (em qualquer lugar)", "Qual Mentira Vou Acreditar", "Diário de um Detento".
A idéia de redenção surge na foto da contracapa, onde os quatro posam segurando uma Bíblia, e nas letras que com tanta insistência tratam de tipos que querem sair do crime, sabem que vão morrer, mas se vêem empurrados para a sombra por uma cruel imposição social.
A São Paulo (e, por extensão, o Brasil) que brota de "Sobrevivendo no Inferno" não há lugar para luas, nem estrelas; nem para banquinhos, violões, patinhos que fazem quém-quém.
Ela é medonha, imunda, habitada por manos maquinados, piranhas de olhos azuis e playboys de calça Calvin Klein marcando no farol da Rebouças com a Brasil. Faz frio, e os casais aproveitam a neblina para transar escondidos nas esquinas.
Se os bacanas não têm sossego, muito menos os bandidos, que ouvem uma voz chamando ao verem a própria vida "escorrer pela escada", como na faixa "Tô ouvindo alguém me chamar".
Como o australiano Nick Cave, os Racionais MC's são barrocos de fim-de-século, relutantes entre ler a Bíblia e apertar o gatilho do 38; entre não querer polícia para encher o saco, mas ao mesmo tempo condenar o "sexo sem limite" do mano que colou nos brotinhos do shopping (está em "Capítulo Quatro, Versículo Três", a melhor música do disco, com batida trip-hop e uma hipnótica frase de piano).
Não é preciso ser PhD em sociologia para perceber que a "mensagem" dos Racionais é, no limite, autoritária e moralista, mas não é por esse ângulo que a banda deve ser vista.
Os Racionais são cronistas ativos da barbárie, que acreditam na pureza do sangue-bom da periferia e na maldade intrínseca de quem anda com corrente de ouro (devem ter razão).
O submundo dos cafundós paulistanos é dominado por emoções baratas, mas não dá espaço para representações.
É ali, no ano um nove nove sete depois de Cristo, que reinam supremos, destilando revolta, os sacerdotes negros dos Racionais MC's.


Álvaro Pereira Júnior, 34, é chefe de Redação da Rede Globo em São Paulo


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