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Comportamento
Acabou o recreio!
Cidades do interior de SP têm toque de recolher que proíbe crianças e jovens de ficar a sós na rua à noite
CHICO FELITTI
ENVIADO ESPECIAL A FERNANDÓPOLIS
(SP) E A ILHA SOLTEIRA (SP)
"É livre a locomoção no território
nacional em
tempo de paz",
diz o artigo 5º da
Constituição, que determina o
chamado "direito de ir e vir".
Para os menores de idade de
seis cidades do noroeste de São
Paulo, esse direito vale só de
dia: elas têm toque de recolher
que proíbe crianças e adolescentes de ficar à noite nas ruas
sem seus pais ou responsáveis.
E há punição para quem descumprir a regra.
Essa lei vale há duas semanas
em Ilha Solteira (a 660 km de
São Paulo) e em Itapura, cidades da mesma comarca (área de
poder de um juiz).
O toque funciona progressivamente: quem tem até 13 anos
não pode ficar na rua depois
das 20h30; quem tem 14 ou 15
anos tem de estar em casa até as
22h; e, para os jovens de 16 ou
17 anos, o horário-limite é 23h.
Quem baixou a portaria, que
também proíbe menores de 16
anos de usar LAN houses, foi o
juiz da Infância e da Juventude
Fernando de Lima, 30.
Lima não falou com a Folha,
mas foi entrevistado pelo programa "Fantástico" e citou a
Bíblia: "(...) A criança, entregue
a si mesma, torna-se temerária" (Eclesiástico 30:8).
Afirmou ainda que o toque
tem a intenção de "colocar horários para os adolescentes
dormirem, para que possam
ter um bom rendimento escolar no dia seguinte".
Para o prefeito de Ilha Solteira, Edson Gomes (PP), o termo
certo é "toque de acolher". Ele
colocou a medida em teste
dentro de casa, com seu filho.
"Ele tem 17 anos e só volta no
horário por causa do toque."
Apreensão e multa
Enquanto a medida completa 14 noites em Ilha Solteira, ela
já existe há quatro anos em
Fernandópolis (a 553 km de
São Paulo). Lá, menores de 18
anos têm de estar dentro de casa às 23h -a não ser que estejam com os pais ou com um
adulto responsável.
A lei vale também nas outras
cidades da comarca: Meridiano, Pedranópolis e Macedônia.
Em todas as cidades onde há
o toque de recolher, quem fica
na rua após o horário determinado é apreendido pela polícia
(veja texto na pág. 8) e levado à
sede do Conselho Tutelar, onde
os pais são chamados.
O "castigo" para os infratores
é gradativo: na primeira
apreensão, os pais do jovem são
advertidos por escrito. A partir
da segunda, os pais podem levar multas que vão de R$ 1.000
a R$ 20 mil -e já houve pais
multados, segundo o juiz da Infância e da Juventude de Fernandópolis, Evandro Pelarin.
Foi ele quem trouxe o toque
de recolher a SP, em 2005. A cidade precursora já teve 40 rondas. Na primeira delas, 50 jovens foram apreendidos.
A lei do toque nasceu por pedidos da população, assustada
com os "altos índices" de jovens
envolvidos com drogas, prostituição e delitos, diz o juiz.
Pelarin cita o Estatuto da
Criança e do Adolescente, que
garante "proteção jurídico-
social a menores em situação
de risco", para justificar a criação do recolhimento.
Lei é "imoral"
"A lei é inconstitucional e
imoral", diz Mário de Oliveira
Filho, da Ordem dos Advogados do Brasil de SP. Ele afirma
que a proibição vai contra o direito de ir e vir, mas pode gerar
números que convençam a população de que ela é boa.
O registro oficial de delitos
(infrações cometidas por menores de idade) de Fernandópolis mostra diferenças entre
2004, sem toque, e os três anos
seguintes, com toque.
Foram 131 furtos em 2004.
Em 2007, o número caiu para
59. Já a posse de drogas cresceu
de 19 casos (2004) para 25
(2007) -veja quadro ao lado.
O instituto de pesquisa Datafolha aconselha cautela com os
números, já que os delitos às
vezes não chegam à polícia.
Gabriel Ferreira, 14, e André
Cyrino, 15, não fazem parte das
estatísticas. Dizem que ficam
longe de álcool e não querem ir
para a noitada. Mesmo assim,
acham o toque uma "chatice".
Mas, enquanto Gabriel quer
que ele acabe, para poder ficar
um pouco mais no shopping, às
sextas-feiras, André diz que é
um "mal necessário".
A mãe de André, Carla Cyrino, 47, é pró-lei. Diz que o jovem muda quando sai à rua,
"por causa das influências".
Ela diz que reforça o toque.
"Eu pego o carro e vou aonde
ele estiver, sem ele ver."
Prefeito de Fernandópolis,
Luiz Vilar (DEM) bate palmas
para a ação. Diz que os pais não
têm mais controle sobre os filhos. "O jovem, hoje, está muito
solto, com muita liberdade."
Pode não ser de hoje: o juiz
Pelarin admite que teria sido
apreendido, se houvesse ronda
em sua época. "Fiquei em situações de proximidade com o álcool aos 15 anos."
Com 15 anos hoje, a menina
que "estreou" a ronda de Ilha
Solteira não acha que esteja em
risco. Diz que ficou "esperta".
"Se vierem de novo, fujo.
Quero ver me pegar!", diz. A
mãe, que a buscou na sede do
Conselho Tutelar, deu-lhe um
ralho, mas não a proibiu de sair
à noite -a reportagem a encontrou na praça às 23h20.
Atrapalhando a aula
"É uma questão de estudar",
diz Airton Vendra Junior, 17,
sobre sua bronca com o toque.
Airton está no primeiro ano
de engenharia elétrica na Universidade Estadual Paulista,
em Ilha Solteira. Pela idade, só
pode ficar na rua até as 23h.
Por mais que os amigos de república zoem, ele só burlou a
regra uma vez, até agora: ficou
na faculdade até as 3h, estudando para uma prova de química. Tirou quatro -a média
da classe foi três.
Airton também passou no
vestibular da Universidade Estadual de Londrina (PR). Arrepende-se de não ter ido: "Lá,
tem mais mulher, e eu não ia
ser tratado como cachorro."
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