São Paulo, segunda-feira, 07 de fevereiro de 2005

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SAÚDE

Garotas correm risco de morrer ao defender em blogs a anorexia e a bulimia como estilo de vida

Diários do terror

Sibyle Fendt
Adolescente alemã com anorexia, internada em clínica; a foto foi selecionada para o concurso World Press Photo Joop Swart Masterclass 2003

ALESSANDRA KORMANN
LEANDRO FORTINO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um perigo para a saúde das garotas ronda a internet. Para defender o que pensam ser um estilo de vida e que, na verdade, são dois distúrbios alimentares graves que podem levar à morte, algumas meninas escrevem blogs, participam de discussões e criam comunidades no Orkut dedicados à bulimia e à anorexia.
A anorexia faz com que meninas, mesmo magras, se sintam gordas e não comam; já a bulimia é marcada por episódios de compulsão alimentar seguidos de culpa. É comum passar de uma doença para a outra.
Cúmplices nesse suicídio lento, algumas meninas criam uma rede de amigas virtuais, na qual se conhecem apenas pelo MSN (programa de mensagens instantâneas), por e-mail, cartas e pelos comentários que deixam nos blogs (diários on-line) das outras. Com idades entre 15 e 17 anos, descobrem nos sites uma maneira de conseguir apoio para continuarem doentes, usando esses blogs para confessar práticas como vomitar após comer e dietas conhecidas por "no food" (sem comida), na qual ficam muitos dias sem se alimentar.
Esses sites também acabam atraindo garotas que têm todos os fatores de risco para desenvolver um distúrbio alimentar para embarcar nessa prática mortal.
Chamam-se entre si de "ana" e "mia", nomes que consideram "carinhosos" para a anorexia e a bulimia. Nos blogs, "miar" é sinônimo de "vomitar". Sem limites, elas querem ser o mais magras possível. Sofrem ainda de forte depressão e são indiferentes quanto ao risco de morte que correm.
Sem sair da frente do computador, elas trocam dicas de como provocar o vômito, de como enganar os familiares e amigos e de como suportar ficar dias sem comer.
"A anorexia e a bulimia são dois grandes estados de solidão. Nesses sites, quando se encontram, elas não se acham tão doentes. Elas dizem que não é doença, é opção de vida. Não é verdade. Quando a doença toma conta, tira delas qualquer opção", afirma a psiquiatra Tatiana Moya, que defendeu tese na USP sobre transtornos alimentares.
"Fiz o blog há um ano para contar a minha vida. Começaram a visitá-lo e daí conheci outros. Na internet eu posso ser qualquer um", conta Renata, 17, que tem 1,63 m e 48 kg. Para ela, "35 kg estará de bom tamanho", apesar de saber que, antes de chegar a esse peso, já poderá estar morta. "Sinto os meus batimentos cardíacos fracos e a capacidade dos meus pulmões meio reduzida. Não é agradável, mas é necessário, embora eu saiba que posso morrer antes."
A família dela já sabe do problema, mas não do blog. Renata é tratada por um psicólogo e um psiquiatra. "Eles me dizem o quanto é bom comer, que é sinal de felicidade. Para meu psiquiatra, tenho um misto de anorexia e bulimia, mas para mim não é. Não estou doente. Sinto-me indiferente."
Nesse universo secreto, há até uma certa disputa macabra de quem consegue ficar mais tempo em uma dieta "no food". "Já fiquei oito dias sem comer nada. Foram várias vezes. Depois, o corpo não vai agüentar uma quantidade estúpida de comida."
A desculpa de muitas garotas para seguir essa dieta mortal é a pressão da mídia e da publicidade. "Vivemos vendo aquelas modelos magérrimas em propagandas e todas aquelas mulheres maravilhosas na TV. Com isso nos sentimos inferiores. A mais feia das feias", diz a gaúcha Karina, 16, 1,70 m, 55 kg, que quer pesar menos de 50 kg.
"As adolescentes são mais suscetíveis às pressões para emagrecer. O estopim para desencadear esse processo doentio pode ser a imagem de magreza que o mercado da moda e a mídia colocam como ideal", diz a psicanalista Maria Beatriz Meirelles Leite, consultora de agências de modelos.
Todas as entrevistadas pelo Folhateen concordam que os blogs as influenciaram a seguir práticas que podem levar à anorexia. A gaúcha Karina aprendeu técnicas de como vomitar em um dos sites. "Os blogs me dão força de vontade. Fiz amigas, com as quais converso no MSN, mas não nos conhecemos pessoalmente." Disfarçar a existência do blog é fácil; difícil é esconder as vezes em que vomita. "Procuro não fazer barulho. Lavo o rosto e vou para o quatro. Já vomitei sete vezes num dia", diz Karina.
A paranaense Isabel, 15, 1,70 m, 64 kg, quer pesar 45 kg. Ela sobe na balança todos os dias, pela manhã, e diz que se sente horrível. Criou o blog há menos de um mês. "Fiquei sabendo deles quando, por curiosidade, resolvi ver blogs de anas e mias."
Isabel sabe que pode morrer se continuar nesse regime, mas não pensa em se tratar. "Acho que todas as anas e as mias sabem que isso leva à morte. Várias meninas já perderam amigas anas por isso. Mas, mesmo assim, isso não nos leva a desistir."
Segundo especialistas, a grande maioria dos casos de transtorno alimentar é acompanhada por depressão. A paulista Vanessa, 16, que estuda no 1º ano do ensino médio, tem 1,70 m e pesa 80 kg. Chegou a pesar 120 kg antes de encarar a dieta suicida. Quer chegar a 45 kg. "Sinto-me muito mal. Faz quatro anos que tento emagrecer."
Há dois anos ela faz desabafos em um blog. "Contamos o nosso dia-a-dia para uma pessoa que sofre da mesma coisa que a gente, então é mais fácil de conversar."
No blog, Vanessa descreve um pouco de sua depressão: "Queria dormir um sono profundo, sabendo que meu corpo está em decomposição e logo vou ser só ossos. Descansaria em paz, porque pelo menos morta tenho certeza de que toda a banha desapareceria e meus lindos ossos apareceriam".
A psicanalista Maria Beatriz Meirelles Leite explica que as meninas desses blogs estão unidas, cultuando essa patologia: "É uma cultura que se auto-alimenta na internet. Em geral, dizem que não estão doentes, mas, no fundo, há sempre uma contradição. Elas sabem que é um sofrimento".
Vanessa procurou um endocrinologista que hoje receita remédios para emagrecer. "Agora nem estou miando tanto, mas antes eram de 15 a 20 vezes por dia."
Como todas as garotas entrevistadas, Vanessa não acha que tem um problema de saúde muito grave. Segundo o nutrólogo e hebiatra (especialista em adolescentes) Mauro Fisberg, chefe do centro de adolescência da Unifesp, uma das características da anorexia e da bulimia é justamente a negação da doença. "É muito difícil perceber que alguém tem transtorno alimentar, porque as pessoas omitem que não estão comendo. Muitas vezes, a família só descobre a doença quando flagra a pessoa sem roupa. Aí, ela já está pesando 30 kg ou 40 kg", afirma Fisberg.
"Nunca procurei tratamento", conta Vanessa. "Não acho que seja uma doença. Anas e mias, como a gente mesmo diz, são nossas amigas, que nos ajudam nos momentos em que a gente precisa. Não vejo como algo que está me fazendo mal. Pretendo moderar quando chegar aos 45 kg."
Denise, 16, quer voltar a ter os 52 kg de quando jogava vôlei, há dois anos. Ela mora no interior de São Paulo, pesa 60 kg e tem 1,68 m de altura. Viu no blog uma maneira de desabafar, porque não podia escrever na agenda o que pensava. "Minha mãe podia ler e achar que eu estava doente. Ela é psicóloga. Um dia, ela viu uma pequena anotação que escrevi e descobriu que tinha algum problema. Ela me ajuda para caramba, sai para andar comigo. Ela percebeu a vontade que eu tenho de emagrecer, mas não deixa eu ficar sem comer."
Para Denise, há muitas meninas que estão nessa pelo estilo. "Acho que elas querem ficar doentes, porque eu já quis. Vejo que as coisas não são bem assim. Meninas já morreram por causa disso. Se eu quiser emagrecer tem de ser de forma saudável."
Segundo a psiquiatra Vanessa Pinzon, da Protad (Projeto de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas), a comunidade médica está tentando conseguir a proibição desses sites, que ela julga prejudiciais. "Às vezes, a menina que tem os fatores de risco para desenvolver um distúrbio liga o computador e pronto, o estrago está feito", diz.


Todos os nomes das autoras de blogs pró-ana e pró-mia desta reportagem foram trocados

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