São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2000

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CAPA
Documentário que estréia na sexta compara a vida de dois jovens da periferia de Recife e discute a situação social no país
Sobrevivendo no inferno

Dado Galdieri/Folha Imagem
O músico Garnizé (esq.) e o cineasta Marcelo Luna, na pré-estréia do filme, em São Paulo


MARCELO VALLETTA
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma garotada com cabelo black, bonés, grossas correntes douradas nos pescoços e o nome "Manos do Gueto" pintado nas camisetas largas dança break e canta rap em uma roda. Uma cena cada vez mais comum nas periferias das grandes cidades, onde a cultura hip hop prolifera, mas insólita no Espaço Unibanco de Cinema, tradicional ponto da alta cultura de São Paulo, onde são exibidos filmes "de arte", que não costumam frequentar os shopping centers.
A moçada do rap esteve lá no último dia 7, sob olhares de gente de expressão do cinema nacional, como o diretor Hector Babenco e o ator Sérgio Mamberti, para a pré-estréia do premiado documentário "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas", de Paulo Caldas -que co-dirigiu o filme "Baile Perfumado" com Lírio Ferreira- e Marcelo Luna, que estréia em quatro capitais na próxima sexta-feira -na quinta-feira, dia 16, há uma sessão especial para os leitores do Folhateen.
O filme discute a situação social e cultural das periferias das grandes cidades por meio da comparação das histórias de dois jovens criados em Camaragibe, município próximo a Recife. Um deles é José Alexandre dos Santos de Oliveira, 27, mais conhecido como Garnizé, baterista do grupo de rap Faces do Subúrbio -ele também ensina percussão para cerca de 150 crianças da comunidade. O outro é Hélio José Muniz, 21, conhecido como Pequeno Príncipe ou, simplesmente, Helinho -ele está em um presídio em Recife, condenado a uma pena de 201 anos por 44 homicídios.
"Um dos objetivos é justamente tentar fazer uma ponte entre a periferia e a classe média", diz Luna, 32. A idéia surgiu em janeiro de 98, quando uma entrevista com Muniz foi publicada pelo "Diário de Pernambuco" -a manchete era "Matar é como beber água".
"Nossa idéia inicial era entrevistá-lo, pois ele é uma síntese emblemática do absurdo a que chegou a violência nas grandes cidades", conta Luna. "Mas como ele é visto por algumas pessoas como um defensor da comunidade, um justiceiro, pois ele matava apenas as almas sebosas (criminosos), sentimos a necessidade de não fazer apologia ao crime e não trazê-lo como único personagem. A gente conheceu Garnizé e viu que o caminho dos dois poderia ser comparado, usando o rap como crônica, como discurso político", afirma.
"Eu conhecia Hélio de cumprimentar, mas não de bater bola, de ir pra clube, pra pagode... A gente se conheceu melhor na filmagem, quando ele me falou que havia matado um cara que me assaltou", conta Garnizé. "A cena em que a gente aparece juntos foi feita para provar que saímos do mesmo gueto, mas as estruturas familiar e educacional foram diferentes. Por isso é que nós tomamos rumos distintos. Mas nós somos iguais, na essência. Eu poderia estar no mesmo nível que ele. Só acho que ele não pensou", afirma. Muniz não foi entrevistado, porque exigiu dinheiro para falar com a reportagem do Folhateen.
O filme ficou pronto em março deste ano, mas só agora estréia em circuito comercial. A obra já foi exibida em universidades e em bairros de periferia e participou de diversos festivais -ganhou prêmios de melhor filme pela escolha do público do 2º Festival Internacional de Cinema de Brasília e do 5º Festival Internacional de Documentários: É Tudo Verdade-, inclusive dos de Cannes e Veneza, onde ganhou elogios da imprensa. "Em Veneza me fizeram a pergunta mais incrível: como foi dirigir os atores", diz Caldas, 36. "Teve um italiano que se indignou e gritava, irado: "O delegado, a mãe e o radialista são atores'", conta.
Garnizé, casado e pai de dois filhos, aproveita a notoriedade para conhecer o mundo -ele viajará para Cuba e Canadá, onde o filme será exibido- e divulgar projetos sociais. "Eu me tornei um exemplo na comunidade, e isso não tem dinheiro que pague. É essencial mostrar que dá pra fazer muita coisa com muito pouco. Veja o Afro-Reggae, no Rio, o projeto Axé, em Salvador, o hip hop de São Paulo, projetos de Recife como o Nascedouro, em Peixinhos, o Alto Falante, no Alto José do Pinho, o Sou de Camará, em Camaragibe. Com tão pouco, estamos conseguindo mudar a cara da periferia."


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