|
Próximo Texto | Índice
VIOLÊNCIA
O perigo vem de perto
Maioria das violências sexuais cometidas contra menores de idade acontece dentro de casa; saiba como e onde denunciar
DIOGO BERCITO
DA REPORTAGEM LOCAL
De manhã, com porta
fechada e luz apagada, Carlos dava início
a um ritual que repetiu por dez anos. Estuprava
Joana, hoje com 15 anos, tomava banho e então estuprava
Marta, 20. É pai das duas.
Essa história violenta, que se
prolongou porque as filhas
eram ameaçadas de morte, é
parecida com a vivida por Preciosa no filme que venceu dois
Oscar.
Ao contrário de "Preciosa",
porém, o estupro de Marta e
Joana é real. Está registrado
em um dos processos criminais
a que a Folha teve acesso e terminou com Carlos condenado
a 54 anos de cadeia -e Joana e
Marta traumatizadas pelo ato.
É dentro de casa, e não na
rua, que é cometida a maior
parte dos abusos sexuais contra menores de idade. E o
agressor, longe de ser desconhecido, costuma fazer parte
da família ou ser próximo dela.
Em 33% dos casos, o abusador é pai ou mãe da vítima, segundo levantamentos da ONG
Centro de Referência da Criança e do Adolescente (ligada à
Ordem dos Advogados do Brasil). Em 14%, é o padrasto.
Nessas situações, o parentesco muitas vezes é usado como
justificativa pelo criminoso.
"Os pais se sentem no direito
de abusar, usam o argumento
"antes eu do que outra pessoa'",
explica Márcia Salgado, dirigente da Delegacia da Mulher.
"Os jovens estão vulneráveis em relação às pessoas que deveriam protegê-los", diz Carmen Lutti, presidente da ONG
Movimento em Defesa da
Criança e do Adolescente -e
são obrigados a viver divididos
entre os sentimentos de medo e
de afeto em relação aos pais.
Em casos de abuso como os
vividos por Joana e Marta, em
que o crime demora a vir à tona,
o estupro passa até mesmo a fazer parte da rotina da casa.
Para evitar engravidar as filhas, por exemplo, Carlos controlava os ciclos menstruais das
duas com remédios. Apesar do
cuidado, o abuso foi descoberto
pela mãe de ambas justamente
quando Marta abortou um filho do próprio pai. Foi quando
a denúncia foi feita à polícia.
Receio
A longa duração de situações
como essa se dá por uma série
de fatores que, juntos, calam a
vítima. Além de serem ameaçados de morte, esses jovens dependem do salário dos pais e
tentam preservar o amor da
mãe pelo marido.
Por sua vez, quando se dá
conta do abuso, a mãe enfrenta
dilemas semelhantes -e pode
preferir fazer vista grossa para
manter o parceiro e o sustento.
Nos depoimentos de Suzana,
14, abusada pelo pai, o dilema
aparece na oposição entre indignação e medo. Em determinado momento, ela diz à psicóloga querer arrancar a própria
pele, de nojo. Depois, demonstra receio de tirar dos irmãos o
pai que eles amam.
Pesa também nos jovens a
sensação de terem sido de alguma maneira responsáveis pelo
abuso -principalmente nos casos em que, depois de algum
tempo, a vítima deixou de oferecer resistência.
"O que esses jovens não percebem é que não houve permissão, eles foram impulsionados
para essa situação", alerta Marli de Oliveira, da ONG Liga Solidária, que tem polo de prevenção à violência doméstica.
Para a lei, a violência é presumida quando a vítima do estupro tem menos de 14 anos.
Omissão
Psicólogos, advogados e assistentes sociais ouvidos pela
reportagem concordam que
denunciar o abuso é necessário
-por mais que possa doer ter
de falar sobre o assunto.
Mas procurar o poder público nem sempre é o primeiro
passo a ser tomado.
"É importante a família estar
pronta, para que a intervenção
não piore as coisas", aconselha
Lélio Ferraz Neto, do Ministério Público de São Paulo (veja
ao lado algumas entidades que
prestam auxílio a vítimas).
Afinal, a denúncia, quando
feita, abala as relações familiares. No caso de Cris, 15, e de Camila, 13, a acusação de que o padrasto abusou delas -desacreditada pela mãe- levou à expulsão das garotas de casa.
O apoio que as duas não encontraram na mãe, porém, veio
de uma tia. Juntas, procuraram
a Justiça. O acusado foi condenado a 12 anos de prisão.
Por sigilo de Justiça, os nomes de todos os envolvidos nos processos foram trocados
79
é a média de denúncias recebidas por dia em janeiro de 2010 pelo Disque 100*
*Fonte: Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e
Adolescentes, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Para denunciar,
disque 100
62%
das 202 mil vítimas (menores) atendidas entre maio de 2003 e janeiro de 2010
eram do sexo feminino
94%
é a porcentagem de casos em que o abusador é alguém que desfruta de convivência
com a criança, como familiares, amigos ou vizinhos
Fonte: ONG Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e
Adolescentes)
Próximo Texto: O que é abuso sexual? Índice
|