UOL


São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

escuta aqui

Legião Urbana expressa o que jovens não conseguem dizer

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã/ Porque, se você parar para pensar, na verdade não há." Os versos da canção "Pais e Filhos", da Legião Urbana, foram cantados na semana passada, em absoluta comoção, no enterro do estudante Felipe Caffé, assassinado aos 19 anos.
Como todos sabem, Felipe e a namorada, Liana Friedenbach, 16, foram mortos quando acampavam em um sítio abandonado em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo.
Como tantas músicas compostas por Renato Russo, "Pais e Filhos" não é do tipo que fixa imediatamente nos ouvidos. Tem uma estrutura estranha, letra longa. O refrão, quando aparece, é quase já no final.
Ainda assim, diante de situações extremas, é geralmente no repertório da Legião Urbana que os adolescentes brasileiros vão buscar instrumentos de catarse, de purificação do espírito.
Do ponto de vista da crítica, muito pouco se salva da obra de Renato Russo/Legião Urbana. Musicalmente, nunca foram além de suas influências mais óbvias, Smiths e Joy Divison.
Nas letras, o simplismo chega a níveis constrangedores. Intermináveis, sugerem falta de poder de síntese. Os versos livres, sem rimas, mais do que experimentação poética, indicam mesmo incapacidade de criar uma métrica mais elaborada. Nem 50 Renatos Russos somados chegariam ao nível de sofisticação lírica de Morrissey, líder dos Smiths, o mais óbvio dos ídolos do músico brasileiro.
Mas acontece que nada do que foi escrito logo acima está em jogo quando o contexto é o de uma situação tão inqualificável como a das mortes de Felipe e Liana. Quando a brutalidade ultrapassou os limites do suportável, os jovens recorreram à lírica simples da Legião, que fala de coisas que eles entendem de um modo acessível, e cujo pano de fundo musical é secundário -o que vale mesmo é a letra.
Na obra "Introdução à Sociologia da Música", Theodor Adorno (1903-1969), filósofo estudioso da indústria cultural, aborda a separação entre o que se diz sobre música e os efeitos que ela produz. "A questão da relação da música com a opinião pública perpassa aquela de sua função na sociedade atual. O que se pensa, diz e escreve sobre música, os pontos de vista que as pessoas expressam, difere fortemente da função real da música, do efeito real que ela tem sobre as vidas das pessoas, sobre sua consciência e seu inconsciente."
Adorno escreveu o texto no início dos anos 60, na Alemanha, quando a indústria da música pop ainda estava em seus primórdios e não tinha nem sombra da importância e do alcance de hoje.
Seria interessante saber o que Adorno diria sobre a música cantada no enterro de Felipe Caffé.


Álvaro Pereira Júnior, 40, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo
E-mail: cby2k@uol.com.br



Texto Anterior: Feira reúne 30 mil títulos para jovens
Próximo Texto: Brasas: Carnaval cabeça 1
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.