São Paulo, segunda, 18 de maio de 1998

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free way
Vergonha nacional e o jegue coletivo

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Foi mal chegar à Terra Brasilis, que os ares putrefatos da nação trouxeram consigo mais um daqueles gostos aziagos vindos de mais uma das tantas tramóias, mentiras e desastres em que somos metidos por essa elite dirigente.
As fotos dos jornais e revistas teimam em mostrar a parte Biafra do país aos segmentos que se crêem Suíça, encastelados que estão em seus palácios refratários e murados. Mais um ano, mais uma seca, mais cenas de gado morto, terra rachada, colheitas destruídas e, obviamente, mais preocupante e desesperador, pessoas morrendo de fome, esvaindo-se até o último fiapo.
Escondida entre os xingamentos dirigidos ao El Niño, os apelos a Deus, Padre Cícero e Zé Gotinha, fica uma daquelas gordas hipocrisias da nossa vida nacional.
A comiseração e piedade para com os que sofrem das chagas da seca, quando vinda dos mandatários da República, é showbiz. Se quisessem ter resolvido o problema da seca nordestina, já o teriam feito há tempos.
Como não querem, escondem-se atrás da vergonhosa falácia de que "agora está tudo nas mãos de Deus" e outras lorotas.
A seca continua porque interessa aos coronéis do sertão nordestino, que se alimentam da miséria, do sofrimento e da ignorância de um povo que não pode querer cometer o grave pecado de se desenvolver. Ainda mais se esse crime for acompanhado pelo desejo de usar um pouco da água sugada pelos grandes latifundiários para suas megaplantações.
Se podia ser acobertada na época do café-com-leite e do voto de cabresto, hoje já não é tão fácil. A miríade de exemplos do mundo faz chegar à óbvia constatação de que, se a seca é uma ocorrência provocada por São Pedro, sua manutenção ou erradicação é tarefa dos homens. Veja aí o exemplo de Israel, comemorando agora apenas 50 anos de existência e já com um setor agrícola desenvolvido por meio de irrigação no deserto do Neguev, mais seco de chuvas que o Planalto Central é de idéias. Resolveu-se lá o problema porque as lideranças pensaram antes no país, e não em seu cercadinho.
Agora as cabeças coroadas parecem ter percebido que essa política não vai resultar em acomodação, mas, sim, em saques e ameaça à propriedade privada, o que causa muito mais comoção nas elites nordestinas do que a morte de meia dúzia -ou meio milhão, tanto faz- de miseráveis. O fato de começarem a agir -com a transposição do São Francisco e, espera-se, a reforma agrária- só serve para corroborar a impressão de que o que faltava não era chuva, mas vergonha na cara.
Só sobram mentiras. A última (e talvez mais perniciosa) é a idéia repetida por vários de meus interlocutores de que nós não podemos fazer nada a respeito. Vem, é claro, de uma concepção equivocada de que o país é "deles", mas isso é assunto pra discussão mais longa. O fato é que o país é nosso, os governantes, nossos empregados, e os flagelados, nossos compatriotas. É um dever moral ajudá-los. Assistencialismo não é solução, mas é paliativo importante, e é nossa obrigação aproveitar a variedade de iniciativas de socorro espalhadas em escolas, lojas, bancos etc. e doar um pouco para quem precisa. Claro que a solução do problema só vem por meio de medidas governamentais, mas estão aí as eleições pra você colocar a pessoa certa no lugar devido. Pra mostrar que os risonhos do Planalto podem comer buchada de bode, usar chapéu de sertanejo e jogar papo fora, porque asinina é só a manada de jegues do sertão, e não os eleitores nacionais.


Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com. O colunista está de férias no Brasil



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