São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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Duas músicas para encerrar 2004 agora

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA

São só duas músicas. De duas bandas vizinhas, Brooklyn, Nova York, uma delas de fama relativa, outra ainda obscura. Duas canções, conhecidas com intervalo de poucas horas, suficientes para um impacto raro, aquele que dá vontade de subir à montanha mais alta em uma noite sem nuvens e escrever no céu negro em letras colossais: I-S-S-O-É-M-O-D-E-R-N-O.
Uma das bandas, a obscura, um trio, chama-se TV On the Radio. "Dreams", uma das canções hoje em questão, começa. Baixo, bateria, vocais cool e, de cara, um aviso: "All your dreams are over now/And all your wings have fallen down" ("Todos os seus sonhos acabaram/E todas as suas asas estão no chão").
Uma guitarra, ao fundo, voa rasante. Em menos de um minuto, tudo muda. Os vocais ficam mais urgentes. Teclados de extração electro aumentam o grau de angústia. Mas calma. Quando tudo parece caminhar para o colapso, um verso solto no ar traz a canção de novo à Terra: "But your heart can dream" ("Mas seu coração pode sonhar"). De novo, o refrão que fala de sonhos e asas. Caos. Vocais cool. Teclados glaciais. Fim dos sonhos, vôos impossíveis. Já se passaram cinco minutos. Acabou.
TV On the Radio acaba de lançar nos EUA seu primeiro álbum: "Desperate Youth, Blood Thirsty Babes" (Juventude Desesperada, Brotinhos Sedentos de Sangue). O visual do vocalista Tunde Adebimpe é o mais sensacional do século: roupas justas e gravatas finas à Strokes, adornadas por uma cabeleira afro que parece especialmente pensada para humilhar o jogador colombiano Valderrama. Completam o grupo o multiinstrumentista Kyp Malone e David Sitek, também conhecido como produtor dos Yeah Yeah Yeahs.
O que nos remete à segunda música-tema de hoje: "Maps", dos... Yeah Yeah Yeahs. Sim, eles, os YYYs, uma das bandas mais criticadas por Escuta Aqui em 2003, responsáveis pelo álbum assustador (no mau sentido), "Fever to Tell".
A recém-descoberta "Maps" é a escondida faixa nova desse disco. Nos primeiros segundos, ouve-se uma guitarra dedilhada rapidamente nas áreas mais agudas. Chega então a vez de uma bateria brutal, maravilhosamente bem gravada, que prepara terreno para os vocais de Karen O. Nessa faixa, Karen O canta, não apenas grita e provoca, canta muito, como uma PJ Harvey contida, como uma Chrissie Hynde no ápice. A letra, mínima, resume-se a uma alerta: "Wait/They don't love like I love you" ("Espere/Eles não te amam tanto quanto eu").
Karen O levita sobre a base instrumental. No fim, cinco palavras de um coração inseguro: "Pack Up/ But don't stray" ("Faça as malas/ Mas não suma").
"Maps" é uma canção romântica com a qual jamais poderia sonhar um fã que só conheça a face mais, digamos, popular dos YYYs. Aquela que privilegia a atitude em detrimento do som, que parece incapaz de compor algo tão delicado como "Maps".
Descobertas, como escrevi acima, em um intervalo de poucas horas, semana passada, as canções do TV on the Radio e dos YYYs confirmam um aspecto fascinante do pop: a capacidade de apreender um momento, de impor-se acima de dogmas vigentes para ganhar identidade autônoma. De ser, enfim, arte.


Álvaro Pereira Júnior, 40, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo
E-mail: cby2k@uol.com.br



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