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Duas músicas para encerrar 2004 agora
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
COLUNISTA DA FOLHA
São só duas músicas. De duas bandas vizinhas, Brooklyn, Nova
York, uma delas de fama relativa,
outra ainda obscura. Duas canções,
conhecidas com intervalo de poucas
horas, suficientes para um impacto
raro, aquele que dá vontade de subir
à montanha mais alta em uma noite
sem nuvens e escrever no céu negro
em letras colossais: I-S-S-O-É-M-O-D-E-R-N-O.
Uma das bandas, a obscura, um
trio, chama-se TV On the Radio.
"Dreams", uma das canções hoje em
questão, começa. Baixo, bateria, vocais cool e, de cara, um aviso: "All
your dreams are over now/And all
your wings have fallen down" ("Todos os seus sonhos acabaram/E todas as suas asas estão no chão").
Uma guitarra, ao fundo, voa rasante. Em menos de um minuto, tudo
muda. Os vocais ficam mais urgentes. Teclados de extração electro aumentam o grau de angústia. Mas calma. Quando tudo parece caminhar
para o colapso, um verso solto no ar
traz a canção de novo à Terra: "But
your heart can dream" ("Mas seu coração pode sonhar"). De novo, o refrão que fala de sonhos e asas. Caos. Vocais
cool. Teclados glaciais. Fim dos sonhos, vôos
impossíveis. Já se passaram cinco minutos.
Acabou.
TV On the Radio acaba de lançar nos EUA
seu primeiro álbum: "Desperate Youth, Blood
Thirsty Babes" (Juventude Desesperada, Brotinhos Sedentos de Sangue). O visual do vocalista Tunde Adebimpe é o mais sensacional do
século: roupas justas e gravatas finas à Strokes, adornadas por uma cabeleira afro que
parece especialmente pensada para humilhar
o jogador colombiano Valderrama. Completam o grupo o multiinstrumentista Kyp Malone e David Sitek, também conhecido como
produtor dos Yeah Yeah Yeahs.
O que nos remete à segunda música-tema
de hoje: "Maps", dos... Yeah Yeah Yeahs. Sim,
eles, os YYYs, uma das bandas mais criticadas
por Escuta Aqui em 2003, responsáveis pelo
álbum assustador (no mau sentido),
"Fever to Tell".
A recém-descoberta "Maps" é a escondida faixa nova desse disco. Nos
primeiros segundos, ouve-se uma
guitarra dedilhada rapidamente nas
áreas mais agudas. Chega então a vez
de uma bateria brutal, maravilhosamente bem gravada, que prepara terreno para os vocais de Karen O. Nessa faixa, Karen O canta, não apenas
grita e provoca, canta muito, como
uma PJ Harvey contida, como uma
Chrissie Hynde no ápice. A letra, mínima, resume-se a uma alerta:
"Wait/They don't love like I love
you" ("Espere/Eles não te amam tanto quanto eu").
Karen O levita sobre a base instrumental. No fim, cinco palavras de um
coração inseguro: "Pack Up/ But
don't stray" ("Faça as malas/ Mas
não suma").
"Maps" é uma canção romântica
com a qual jamais poderia sonhar
um fã que só conheça a face mais, digamos, popular dos YYYs. Aquela
que privilegia a atitude em detrimento do som, que parece incapaz de
compor algo tão delicado como
"Maps".
Descobertas, como escrevi acima, em um
intervalo de poucas horas, semana passada, as
canções do TV on the Radio e dos YYYs confirmam um aspecto fascinante do pop: a capacidade de apreender um momento, de impor-se acima de dogmas
vigentes para ganhar
identidade autônoma.
De ser, enfim, arte.
Álvaro Pereira Júnior, 40, é editor-chefe do "Fantástico" em São Paulo
E-mail: cby2k@uol.com.br
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