São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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DEUS NÃO MORA AQUI

O pecado mora ao lado

FERRÉZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dei um rolê pra ver "Cidade de Deus", o filme. Quem leu o livro tá na maior expectativa. Afinal, qual será a cara do Dadinho? Será que vai ter um rosto sofrido ou vai ser algum garanhão da Globo, curtido a maquiagem e mal interpretando o povão? Afinal, o que eles conhecem como povo é só empregado. Fica difícil interpretar.
Então tá, vamos deixar de lado essas fitas, tamo na fila. Eu ia falar direto do filme e do livro, mas, convenhamos, a fila e os bastidores são um show à parte.
Êta pessoalzinho estranho, hein? Vários cabelos pintados, aqueles óculos "mamãe, eu sou artista". Eu quase dou risada, mas me contenho. Olho pra um lado e pra outro, e nada. Até que encontro uns patrícios ali que parecem com meu pessoal. Depois, fico sabendo que são os atores do filme, tudo da favela da C.D.D.
A fila tá imensa, um cara fala em castelhano, outro responde em inglês e eu, com meu favelês, mudinho da silva, só quero ver o filme.
Ah! Eu tenho que falar do ar de todo mundo, tenho que falar da atmosfera da cena, todo mundo tipo a gozolândia. A gente num se acostumou ainda com isso. Tem muita felicidade no ar, e o filme deve ser foda mesmo.
E é! Fiquei muitas vezes irritado. Uns puta bagulho sério acontecendo na trama, e o pessoal ri. Tudo era motivo de riso, é tipo Charlie Chaplin.
Eu num acho engraçado, eu acho é triste!
O filme me passou isso também, identificação automática. O menino que sonha em ser fotógrafo só quer se manter neutro o tempo todo. Aqui também todo mundo teve um sonho. Teve, porque desistiu. Utopia não enche barriga, e a vida pra nós é mais um funil. Os meninos que aqui soltam pipa compartilham aquilo também: 9mm, pt 380 em diante; calibre 38 virou coisa pra otário.
A diferença das favelas é explícita no filme e se nota logo de começo. As casinhas da Cidade de Deus, começando tipo um condomínio. Aqui em Sampa já foi nos barracos mesmo. Outra diferença é a quantidade de negros. Lá tem muito mais, aqui na zona sul e por toda São Paulo, a maioria é nordestina.
A parte que mais me fascinou foi a da explicação do tráfico: como se comercializa, o começo de tudo, a comparação com um negócio qualquer, a entrega do produto, a simplificação de todo o mal que nos corrói, a cena magnífica do boy indo lá comprar. Aqui, os carros importados não param de passar pra lá e pra cá também.
Queria que os moleques daqui tivessem acesso ao "Cidade de Deus". Não há nada melhor pra gente que se olhar no espelho.
Terminou o filme, fomos para o saguão. Uma pá de cerveja na mão de todo mundo, todo mundo empolgado. As pessoas realmente gostaram do filme, dá pra notar. Uns malucos de esquerda tavam comentando a falta de ar-condicionado no lugar, reclamando do número de pessoas. Porra, mermão! Acabaram de assistir a um puta retrato do país e tão reclamando do ar-condicionado?
Trombei com o Paulo Lins (autor do romance "Cidade de Deus"), um dos pouquíssimos escritores que faço questão de pegar na mão. Chamei o Marçal pra tirar uma foto junto. Ficamos conversando um pouco, nunca vi o Paulo tão empolgado. Sujeito simples, veste a humildade por fora e no coração, de boné e com um sorrisinho sarcástico. Dá pra ver a empolgação. Antes de eu ter entrado pra ver o filme, o Marçal Aquino (autor de "O Invasor") me cumprimentou e disse pra eu assistir ao filme com o coração, e não com a mente. Foi o que fiz. O livro eu li há uns dois anos e me marcou muito. Parecia que os problemas eram os mesmos. Periferia é periferia em qualquer lugar, então o que muda são as gírias. E a polícia é tudo igual. Como todo filme compacta o livro, é claro que tem coisas que deveriam estar lá e não estão, como a amizade de Zé Pequeno e do Bené, que eu achei meio gelada no filme, pois no livro eles são mais ligados.
Não quero fazer papel de crítico, pois esse não é um filme qualquer. É a vida e a história das pessoas de uma imensa comunidade. Sei que vou sair dali e voltar pra minha. Pra os outros, aquilo pode ser ficção, por isso o motivo dos risos. Mas eu não dou risada, pois também tenho que voltar pra minha quebrada, que não é de Deus, mas tem a ver com o pecado: o pecado da omissão de uma outra classe, que finge que não existimos, mas abre uma exceção e faz questão de assistir ao filme que nos retrata.
Salvar o moleque de rua não é chique, mas comprar a foto dele com os olhos tristes numa exposição em Paris é. Êta mundo cão.


Ferréz é escritor, autor de "Capão Pecado" (Labortexto Editorial), organizador da coleção "Literatura Marginal" (ed. Casa Amarela) e mora no Capão Redondo.

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