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DEUS NÃO MORA AQUI
O pecado mora ao lado
FERRÉZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dei um rolê pra ver
"Cidade de
Deus", o filme.
Quem leu o livro tá
na maior expectativa. Afinal, qual será
a cara do Dadinho?
Será que vai ter um
rosto sofrido ou vai
ser algum garanhão
da Globo, curtido a
maquiagem e mal
interpretando o povão? Afinal, o que
eles conhecem como povo é só empregado. Fica difícil interpretar.
Então tá, vamos deixar de lado
essas fitas, tamo na fila. Eu ia falar
direto do filme e do livro, mas,
convenhamos, a fila e os bastidores
são um show à parte.
Êta pessoalzinho estranho, hein?
Vários cabelos pintados, aqueles
óculos "mamãe, eu sou artista". Eu
quase dou risada, mas me contenho. Olho pra um lado e pra outro,
e nada. Até que encontro uns patrícios ali que parecem com meu pessoal. Depois, fico sabendo que são
os atores do filme, tudo da favela
da C.D.D.
A fila tá imensa, um cara fala em
castelhano, outro responde em inglês e eu, com meu favelês, mudinho da silva, só quero ver o filme.
Ah! Eu tenho que falar do ar de
todo mundo, tenho que falar da atmosfera da cena, todo mundo tipo
a gozolândia. A gente num se acostumou ainda com isso. Tem muita
felicidade no ar, e o filme deve ser
foda mesmo.
E é! Fiquei muitas vezes irritado.
Uns puta bagulho sério acontecendo na trama, e o pessoal ri. Tudo
era motivo de riso, é tipo Charlie
Chaplin.
Eu num acho engraçado, eu acho
é triste!
O filme me passou isso também,
identificação automática. O menino que sonha em ser fotógrafo só
quer se manter neutro o tempo todo. Aqui também todo mundo teve um sonho. Teve, porque desistiu. Utopia não enche barriga, e a
vida pra nós é mais um funil. Os
meninos que aqui soltam pipa
compartilham aquilo também:
9mm, pt 380 em diante; calibre 38
virou coisa pra otário.
A diferença das favelas é explícita
no filme e se nota logo de começo.
As casinhas da Cidade de Deus, começando tipo um condomínio.
Aqui em Sampa já foi nos barracos
mesmo. Outra diferença é a quantidade de negros. Lá tem muito
mais, aqui na zona sul e por toda
São Paulo, a maioria é nordestina.
A parte que mais me fascinou foi
a da explicação do tráfico: como se
comercializa, o começo de tudo, a
comparação com um negócio
qualquer, a entrega do produto, a
simplificação de todo o mal que
nos corrói, a cena magnífica do
boy indo lá comprar. Aqui, os carros importados não param de passar pra lá e pra cá também.
Queria que os moleques daqui tivessem acesso ao "Cidade de
Deus". Não há nada melhor pra
gente que se olhar no espelho.
Terminou o filme, fomos para o
saguão. Uma pá de cerveja na mão
de todo mundo, todo mundo empolgado. As pessoas realmente
gostaram do filme, dá pra notar.
Uns malucos de esquerda tavam
comentando a falta de ar-condicionado no lugar, reclamando do número de pessoas. Porra, mermão!
Acabaram de assistir a um puta retrato do país e tão reclamando do
ar-condicionado?
Trombei com o Paulo Lins (autor
do romance "Cidade de Deus"),
um dos pouquíssimos escritores que
faço questão
de pegar na
mão. Chamei
o Marçal pra
tirar uma foto junto. Ficamos conversando um
pouco, nunca
vi o Paulo tão
empolgado.
Sujeito simples, veste a
humildade
por fora e no coração, de boné e
com um sorrisinho sarcástico. Dá
pra ver a empolgação. Antes de eu
ter entrado pra ver o filme, o Marçal Aquino (autor de "O Invasor")
me cumprimentou e disse pra eu
assistir ao filme com o coração, e
não com a mente. Foi o que fiz. O
livro eu li há uns dois anos e me
marcou muito. Parecia que os problemas eram os mesmos. Periferia
é periferia em qualquer lugar, então o que muda são as gírias. E a
polícia é tudo igual. Como todo filme compacta o livro, é claro que
tem coisas que deveriam estar lá e
não estão, como a amizade de Zé
Pequeno e do Bené, que eu achei
meio gelada no filme, pois no livro
eles são mais ligados.
Não quero fazer papel de crítico,
pois esse não é um filme qualquer.
É a vida e a história das pessoas de
uma imensa comunidade. Sei que
vou sair dali e voltar pra minha.
Pra os outros, aquilo pode ser ficção, por isso o motivo dos risos.
Mas eu não dou risada, pois também tenho que voltar pra minha
quebrada, que não é de Deus, mas
tem a ver com o pecado: o pecado
da omissão de uma outra classe,
que finge que não existimos, mas
abre uma exceção e faz questão de
assistir ao filme que nos retrata.
Salvar o moleque de rua não é
chique, mas comprar a foto dele
com os olhos tristes numa exposição em Paris é. Êta mundo cão.
Ferréz é escritor, autor de "Capão Pecado"
(Labortexto Editorial), organizador da coleção "Literatura Marginal" (ed. Casa Amarela) e mora no Capão Redondo.
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