São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2009
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VALE A PENA SABER

LITERATURA


Do retrato de época ao universal das paixões

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
CONSULTORA DE LÍNGUA PORTUGUESA DO GRUPO FOLHA

Independentemente da efeméride que foi o centenário de sua morte, lembrado no ano de 2008, Machado de Assis é presença obrigatória nas provas de literatura dos grandes vestibulares do país.
Machado consegue reunir em sua obra características que o fazem talvez o maior representante da literatura brasileira. Retratou o seu tempo, mas não o fez de forma esquemática. Foi crítico da realidade, mas nunca se deixou seduzir pelo denuncismo fácil, tão em voga em sua época, quando as mazelas da sociedade eram matéria literária (veja-se "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, de 1890).
Apesar de mulato, descendente de escravos, não fez de sua condição uma bandeira, estratégia que seria tão fácil quanto óbvia. Tratou do tema da escravidão, como de outros, pela ótica universal da ironia, forma de percepção crítica que ultrapassa os limites do tempo e da geografia. Belo exemplo disso está num de seus mais bem-acabados textos, o conto "Pai contra Mãe", do livro "Relíquias de Casa Velha", em que a ironia é dramática e instiga não ao riso, mas à reflexão.
Como resolver à luz da razão e da justeza (para não dizer da justiça) a questão que opõe o pai à mãe, cada qual defendendo a sua cria com as armas que tem? No plano individual, não há solução: uma criança morre para que a outra viva. O problema, todavia, não existiria se não houvesse uma injustiça estrutural na sociedade, que atendia pelo nome de escravidão.
Sem resvalar para a pieguice, Machado conta uma história exemplar, construída em todos os detalhes que compõem a moral da época. O conto tem início com a descrição das máscaras de folha de flandres penduradas à porta de oficinas e de sua evidente utilidade no cultivo da disciplina do trabalho escravo. Acresce-se a esse ambiente de acintosa amoralidade em que se passa a história a construção do personagem central, que, pouco amigo da labuta diária, vivia da prática de um "ofício do tempo", a captura de negros fugidos.
Nesse conto, em particular, são os pormenores que se encarregam de pôr o leitor na posição de juiz. Fazia parte da vida da época perpassar os olhos pelos jornais e encontrar anúncios de escravos fugidos com a descrição do carimbo que ostentavam no corpo e a promessa de gratificação a quem os restituísse ao proprietário, que, além de pagar um prêmio ao captor, daria ao fugitivo o merecido castigo.
Ao ajustar a sintonia fina e mostrar com naturalidade o dia-a-dia da escravidão, o modo como essa situação era vivenciada pela sociedade em seu cotidiano, Machado faz um retrato absolutamente realista de sua época e, ao mesmo tempo, propõe uma reflexão de fundo ético que ultrapassa o momento histórico.
Esse constante diálogo entre o mundo que lhe é contemporâneo e a universalidade das paixões encravadas nas situações corriqueiras faz de Machado um dos grandes da literatura mundial. Sua prosa tem a característica própria da poesia: consegue manifestar o universal no particular.

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL, é autora dos volumes "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole)



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