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VALE A PENA SABER
LITERATURA
Do retrato de época ao universal das paixões
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
CONSULTORA DE LÍNGUA PORTUGUESA
DO GRUPO FOLHA
Independentemente da efeméride que foi o centenário de
sua morte, lembrado no ano de
2008, Machado de Assis é presença obrigatória nas provas de
literatura dos grandes vestibulares do país.
Machado consegue reunir
em sua obra características que
o fazem talvez o maior representante da literatura brasileira. Retratou o seu tempo, mas
não o fez de forma esquemática. Foi crítico da realidade, mas
nunca se deixou seduzir pelo
denuncismo fácil, tão em voga
em sua época, quando as mazelas da sociedade eram matéria
literária (veja-se "O Cortiço",
de Aluísio Azevedo, de 1890).
Apesar de mulato, descendente de escravos, não fez de
sua condição uma bandeira, estratégia que seria tão fácil
quanto óbvia. Tratou do tema
da escravidão, como de outros,
pela ótica universal da ironia,
forma de percepção crítica que
ultrapassa os limites do tempo
e da geografia. Belo exemplo
disso está num de seus mais
bem-acabados textos, o conto
"Pai contra Mãe", do livro "Relíquias de Casa Velha", em que
a ironia é dramática e instiga
não ao riso, mas à reflexão.
Como resolver à luz da razão
e da justeza (para não dizer da
justiça) a questão que opõe o
pai à mãe, cada qual defendendo a sua cria com as armas que
tem? No plano individual, não
há solução: uma criança morre
para que a outra viva. O problema, todavia, não existiria se não
houvesse uma injustiça estrutural na sociedade, que atendia
pelo nome de escravidão.
Sem resvalar para a pieguice,
Machado conta uma história
exemplar, construída em todos
os detalhes que compõem a
moral da época. O conto tem
início com a descrição das máscaras de folha de flandres penduradas à porta de oficinas e de
sua evidente utilidade no cultivo da disciplina do trabalho escravo. Acresce-se a esse ambiente de acintosa amoralidade
em que se passa a história a
construção do personagem
central, que, pouco amigo da labuta diária, vivia da prática de
um "ofício do tempo", a captura
de negros fugidos.
Nesse conto, em particular,
são os pormenores que se encarregam de pôr o leitor na posição de juiz. Fazia parte da vida da época perpassar os olhos
pelos jornais e encontrar anúncios de escravos fugidos com a
descrição do carimbo que ostentavam no corpo e a promessa de gratificação a quem os
restituísse ao proprietário,
que, além de pagar um prêmio
ao captor, daria ao fugitivo o
merecido castigo.
Ao ajustar a sintonia fina e
mostrar com naturalidade o
dia-a-dia da escravidão, o modo como essa situação era vivenciada pela sociedade em
seu cotidiano, Machado faz um
retrato absolutamente realista
de sua época e, ao mesmo tempo, propõe uma reflexão de
fundo ético que ultrapassa o
momento histórico.
Esse constante diálogo entre
o mundo que lhe é contemporâneo e a universalidade das
paixões encravadas nas situações corriqueiras faz de Machado um dos grandes da literatura mundial. Sua prosa tem
a característica própria da poesia: consegue manifestar o universal no particular.
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, consultora de
língua portuguesa do Grupo Folha-UOL, é autora dos volumes "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole)
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