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Vale a pena saber
LITERATURA
Reflexão sobre o fazer poético
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É comum considerarmos
poético todo e qualquer conteúdo de teor subjetivo. Será
que, para fazer poesia, basta
sentir e escrever o que se sente?
Os poetas modernos, que,
muitas vezes, se debruçaram
sobre o fazer poético, não raro
transformando-o em assunto
de poesia, dariam a essa questão uma resposta negativa. Fernando Pessoa, na célebre "Autopsicografia", afirma: "O poeta
é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir
que é dor/ A dor que deveras
sente". À primeira vista, os versos do poeta parecem uma armadilha semântica: como alguém finge que é dor uma dor
que realmente sente? Se o sentimento é verdadeiro, por que
fingi-lo? Aí está a chave para
compreender por que nem
sempre aquele sentimento posto no papel num momento de
emoção resulta em poesia.
O fingimento de Pessoa é a
elaboração. Em outro poema,
diz ele: "Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação". Existe
um dado racional na construção do poema para que seja
transmitida ao leitor a emoção
sentida pelo poeta.
Ler os sentimentos de alguém postos no papel pode não
nos conduzir a um estado de
sensibilidade apesar de toda a
sinceridade do escritor. O segredo está em despertar no leitor uma emoção semelhante
àquela sentida pelo poeta.
Manuel Bandeira costumava
"desentranhar" poesias dos
jornais. Transformava em poesia aquilo que poderia ser lido
como mais um fato corriqueiro.
O grande exemplo está no conhecido "Poema Tirado de uma
Notícia de Jornal" ("João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número/ Uma noite ele chegou no
bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois
se atirou na Lagoa Rodrigo de
Freitas e morreu afogado.").
A percepção do poético dá-se
pelo foco num personagem
anódino, sem expressão na sociedade. Trata-se de uma pessoa humilde, sem um sobrenome que identifique a sua origem, sem local de trabalho fixo,
sem endereço. Depreende-se
do apelido e da seqüência de
ações ser uma pessoa alegre e
querida em seu meio. O destino
trágico, que parece ter coroado
um ritual dionisíaco, aponta
para o caráter dramático da
história, mas, no discurso jornalístico, a narrativa reduz-se à
simples informação.
Ao retirar do jornal essa história e depurá-la, reduzindo-a
aos seus elementos essenciais,
Bandeira põe diante do leitor
não mais um texto de objetivo
informativo, mas um texto de
conteúdo reflexivo. Nesse momento, atinge a poeticidade.
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e
"Uso da Vírgula" (Manole), é colunista da Folha
Online e do site gazetaweb.globo.com/
thaisncamargo@uol.com.br
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