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HISTÓRIA
O Vale do Paraíba e a crise na escravidão
Para os cafeicultores escravistas do Vale, o fim da escravidão era o fim do mundo
ROBERSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um dos aspectos mais intrigantes na transição do Império
para a República no Brasil diz
respeito à atitude dos grandes
cafeicultores escravistas do Vale do Paraíba em relação à crise
da escravidão, que se tornou
mais aguda nas décadas de 70 e
80 do século 19.
O problema é que, a partir da
década de 1870, o oeste paulista
passou a se destacar como principal polo cafeicultor, com
maior produtividade e mais
qualidade, além de preços mais
vantajosos. As novas regiões
produtoras contavam com algumas vantagens para obter esses resultados, tais como a
maior fertilidade da terra e o
emprego de relações de trabalho livre, através do colonato,
que ganhou impulso no decorrer da década de 80.
Apesar das vantagens proporcionadas pelas relações de
trabalho livre (maior produtividade e redução dos custos da
mão de obra, que no regime escravista corriam por conta do
proprietário do escravo), os
tradicionais fazendeiros do Vale resistiram a empregá-las.
Vários fatores explicam essa
atitude, mas, entre eles, cabe
destaque às implicações desse
novo sistema na "mentalidade
de gestão" da aristocracia escravista.
No sistema escravista a relação de trabalho fundamenta-se
numa relação "vertical" de
mando-obediência, assegurada
pela ameaça da punição física.
Simplificando, a extensão da
autoridade do senhor é ampla,
e, nesse campo, ele a exerce
com capricho e arbitrariedade.
O sistema de trabalho livre,
diferentemente, é fundado na
ideia de contrato e remete mais
ao campo das relações "horizontais". Ele pressupõe a liberdade ou a autonomia de vontade do contratante e do contratado, é regulado por direitos e
deveres de ambas as partes e
com previsão de punições recíprocas para o caso de violação
das regras previstas.
É importante destacar que o
tipo de mentalidade que deriva
das relações entre senhores-escravos (prepotência versus
subserviência) e contratantes-contratados (zelo pela observância das regras) não fica restrita ao universo das relações
de trabalho, mas acaba se irradiando para outras esferas da
existência social.
Por exemplo, há fartas evidências de que a violência e o
arbítrio empregados pelo senhor no trato dos escravos se
manifestava, redimensionada,
no campo das relações familiares e políticas.
Assim, libertar os escravos,
mesmo em contrapartida de
indenizações, e abraçar novas
relações de trabalho não significava apenas alterar o modo de
administrar a propriedade,
mas implicava profundas
transformações na visão de
mundo da aristocracia.
Para eles, de fato, o fim da escravidão era o fim do mundo, o
fim do mundo aristocrático.
Daí uma das dificuldades da
aristocracia escravista do Vale
em se reciclar, se modernizar.
Apegados, intransigentemente, aos seus preconceitos
(da inferioridade dos negros,
mulatos, pobres) e aos valores
aristocráticos (cujos emblemas
eram a riqueza derivada da terra e da posse de escravos, a origem familiar e a cultura europeizada), os tradicionais "donos do poder" não conseguiram se colocar em sintonia
com as mudanças irreversíveis
que se anunciavam.
Veio a abolição, as propriedades escravistas quebraram, a
riqueza e o prestígio se desfizeram e perderam o poder.
ROBERSON DE OLIVEIRA é professor do colégio Móbile, coautor de "História do Pensamento
Econômico" (Saraiva) e autor de "História do
Brasil, Análise e Reflexão" e "As Rebeliões Regenciais" (FTD)
roberson.co@uol.com.br
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