São Paulo, terça-feira, 28 de julho de 2009
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HISTÓRIA

O Vale do Paraíba e a crise na escravidão

Para os cafeicultores escravistas do Vale, o fim da escravidão era o fim do mundo

ROBERSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos aspectos mais intrigantes na transição do Império para a República no Brasil diz respeito à atitude dos grandes cafeicultores escravistas do Vale do Paraíba em relação à crise da escravidão, que se tornou mais aguda nas décadas de 70 e 80 do século 19.
O problema é que, a partir da década de 1870, o oeste paulista passou a se destacar como principal polo cafeicultor, com maior produtividade e mais qualidade, além de preços mais vantajosos. As novas regiões produtoras contavam com algumas vantagens para obter esses resultados, tais como a maior fertilidade da terra e o emprego de relações de trabalho livre, através do colonato, que ganhou impulso no decorrer da década de 80.
Apesar das vantagens proporcionadas pelas relações de trabalho livre (maior produtividade e redução dos custos da mão de obra, que no regime escravista corriam por conta do proprietário do escravo), os tradicionais fazendeiros do Vale resistiram a empregá-las.
Vários fatores explicam essa atitude, mas, entre eles, cabe destaque às implicações desse novo sistema na "mentalidade de gestão" da aristocracia escravista.
No sistema escravista a relação de trabalho fundamenta-se numa relação "vertical" de mando-obediência, assegurada pela ameaça da punição física.
Simplificando, a extensão da autoridade do senhor é ampla, e, nesse campo, ele a exerce com capricho e arbitrariedade.
O sistema de trabalho livre, diferentemente, é fundado na ideia de contrato e remete mais ao campo das relações "horizontais". Ele pressupõe a liberdade ou a autonomia de vontade do contratante e do contratado, é regulado por direitos e deveres de ambas as partes e com previsão de punições recíprocas para o caso de violação das regras previstas.
É importante destacar que o tipo de mentalidade que deriva das relações entre senhores-escravos (prepotência versus subserviência) e contratantes-contratados (zelo pela observância das regras) não fica restrita ao universo das relações de trabalho, mas acaba se irradiando para outras esferas da existência social.
Por exemplo, há fartas evidências de que a violência e o arbítrio empregados pelo senhor no trato dos escravos se manifestava, redimensionada, no campo das relações familiares e políticas.
Assim, libertar os escravos, mesmo em contrapartida de indenizações, e abraçar novas relações de trabalho não significava apenas alterar o modo de administrar a propriedade, mas implicava profundas transformações na visão de mundo da aristocracia.
Para eles, de fato, o fim da escravidão era o fim do mundo, o fim do mundo aristocrático. Daí uma das dificuldades da aristocracia escravista do Vale em se reciclar, se modernizar.
Apegados, intransigentemente, aos seus preconceitos (da inferioridade dos negros, mulatos, pobres) e aos valores aristocráticos (cujos emblemas eram a riqueza derivada da terra e da posse de escravos, a origem familiar e a cultura europeizada), os tradicionais "donos do poder" não conseguiram se colocar em sintonia com as mudanças irreversíveis que se anunciavam.
Veio a abolição, as propriedades escravistas quebraram, a riqueza e o prestígio se desfizeram e perderam o poder.


ROBERSON DE OLIVEIRA é professor do colégio Móbile, coautor de "História do Pensamento Econômico" (Saraiva) e autor de "História do Brasil, Análise e Reflexão" e "As Rebeliões Regenciais" (FTD)

roberson.co@uol.com.br


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