São Paulo, sexta-feira, 01 de janeiro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Vésperas do fim


Imaginar uma humanidade melhor é um sonho que acabou, e muito antes dos Beatles


ANO NOVO, vida velha. Ainda bem. Falar mal do ano que se foi é obrigação, uma praxe basicamente adotada por todos.
Esperar bem-aventuranças do futuro seria, na pior das hipóteses, mais moderno e mais jovem. Mas a vida -principalmente a minha- nada tem a ver com o calendário, os fusos, as órbitas gravitacionais da Terra em que fomos -segundo a bela prece cristã- desterrados num vale de lágrimas.
Exagero, também, esse vale cheio de pranto. Feitas as contas, olhando tudo em conjunto, ficamos na mediocridade do empate, permanecemos em casa: a cada polo oposto corresponde uma grandeza proporcionada. Parece um teorema, mas é bolação minha, conquistada no único pifão de lança-perfume que tomei, em remoto carnaval, cheirando um rodo metálico para nunca mais.
Senti que estava diante da verdade absoluta, a ponto de descobrir tudo e tudo sentir, quando, de repente, no fundo e no profundo da matéria, veio da carne essa óbvia verdade: cada subida prepara a queda proporcional, cada fossa abre espaço para a altura equivalente. No final da estrada, estamos no mesmo ponto de onde saímos: no zero e no nada.
Bem, o papo de fim de ano está pessimista, mas essas datas festivas me trazem uma lucidez do demônio -se é que os demônios são lúcidos como são lucíferes, cheios de luz. A rotina e a convenção nos obrigam à boa educação, à cordialidade, à esperança.
Prefiro ficar na minha: a falta de informação abre uma trégua e fazemos força para acreditar que tudo será melhor. Em certo sentido, continuar vivendo pode ser considerado uma façanha melhor. Mas melhor do quê? Vamos para 2010 e muitos dos que me leram no ano passado, por falta do que fazer ou para ter um argumento a mais contra as minhas míseras letras, na certa já terão empacotado.
Outros talvez sobrevivam para ter a certeza de que continuei o mesmo. Isso é pior? Eu próprio talvez nem chegue a ver o próximo ano, 2011 -e, honestamente, não perco grande coisa. Sorte do mundo e meu azar.
Recebo com hipócrita cortesia os votos de próspero Ano Novo ou generosa mensagem parecida. Lembro que um ex-presidente desta República chamou, certa vez, um ano do senhor de "poltrão". Não me lembro a troco de que, o fato é que 1961 foi classificado de poltrão por quem entendia do assunto e de português.
Não vou repetir a proeza de Jânio Quadros, mesmo porque não aprecio a palavra poltrão. Mas hoje, olhando em replay o tempo que escorreu, sinto que havia razão (ou premonição) na sua fala.
Poltrão ou poltrã também será a próxima década e nada espero dos dez anos que nos aguardam ou que aguardam vocês.
Imaginar uma humanidade melhor é sonho que acabou, não com os Beatles, mas muito antes, desde que um certo macaco teve uma pausa entre o comer e o gerar para se perguntar: quem sou eu? O que estou fazendo neste mundo cheio de macacos? Até que um deles ficou de saco cheio e resolveu se transformar em homem. O macaco melhorou ou foi o homem que piorou?
O ano chega ao fim, mas tudo recomeça no dia seguinte. Pessimismo à parte, os melhores votos desse mau escriba a todos os leitores e familiares. Li num antigo almanaque de farmácia que o mundo acabaria em 1980. Alguém disse que acabaria em 2000. Guardei esses números.
Tanto me faz que o mundo acabe ou deixe de acabar em qualquer ano. No Recife, havia uma seita que chegou a marcar uma data. Parece que será em maio. É uma pena, pois não teremos a Copa do Mundo de 2014 nem a Olimpíada de 2016. Nem sucessão presidencial, o que deixará o Zé Serra e a Dilma Rousseff sem emprego.
Acredito que o mundo não acabará nunca. É a forma de vingança da matéria e dos deuses.
A matéria se transformará em alguma outra coisa e os deuses terão oportunidade de meditar na besteira que fizeram ao criar o homem e o mundo.
Pessoalmente, considero que cada ano que acaba é uma forma de perdão para tudo o que fizemos de errado. E também um pedido de possível esquecimento, na esperança de que tudo ainda possa valer a pena, mesmo que a alma seja pequena.


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