São Paulo, sexta-feira, 01 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

O dengue nosso de cada dia e o Rio de sempre

Pretextos nunca faltaram: era violência urbana, com os sequestros, os assaltos, as balas perdidas. Ou então a depravação moral, a esbórnia, a licenciosidade de um balneário voltado para o prazer. Entre o crime e o pecado, puritanos de diversos feitios e de outras plagas sempre condenaram o Rio, considerando-o uma anacrônica mistura da Sodoma bíblica com a Chicago dos filmes dos anos 30. Bem verdade que a violência não é exclusividade carioca, como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar. Tampouco os excessos da carne são invenção do carioca. Critica-se em todo o país a exuberante vitalidade de nossas mulatas e do nosso mulherio em geral, que nas praias e nos desfiles de Carnaval costumam empolgar aborígenes e forasteiros.
Mas, no ano passado, em pacata cidade do Nordeste brasileiro, o chamado tríduo momesco deixou um saldo de 18 estupros e uma estranhíssima orgia, na qual um cachorro (pastor alemão) teve entusiasmada participação. Não vou garantir que aqui no Rio já não se tenha chegado a tal ponto. Tudo é possível. Mas sempre louvei a imaginação do brasileiro, sobretudo em matéria de pagamento de dívida externa, de calote interno e de esbórnia sexual.
Para falar a verdade, não são apenas os brasileiros de outros rincões que estão nessa de puxar o tapete do Rio. Em outubro passado, atravessando o sul da França, peguei uma tempestade perto de Lyon. O primeiro hotel com garagem me serviu de abrigo. Sem nada a fazer, liguei a televisão e vi um documentário que mostrava os perigos do Rio: um inocente tedesco, branco e virginal como uma valquíria wagneriana, levou para a praia óculos, videogravador, relógio de pulso e radinho de pilha, além de sua tradicional inocência. O documentário mostrava o mar, a paisagem, o sol -e evidentemente o alemão, embasbacado diante de tanta e tamanha beleza. Corte rápido para dois pivetes que se aproximam, como quem não quer nada. O alemão vai dar um mergulho e volta para sua esteira. Sim, a esteira resistira ao assalto, mas o equipamento de primeiro-mundista tinha se evaporado. A voz off do narrador advertia: "Se você não quer perder o que é seu, evite o Rio de Janeiro".
Bom, já contei aqui ou em outro canto que fui roubado no aeroporto de Genebra, no histórico dia 7 de setembro de 1990. Passei pela gravíssima crise de identidade da qual já dei notícia, pois fiquei sem documentos e sem dólares. Não vou cometer a insânia de comparar o Rio com Genebra em matéria de assaltos. Mas onde há homem há o humano -e o crime é humano.
A onda mais recente, agora, é a epidemia de dengue. Leio nas folhas que diversos Estados estão tomando providências para evitar que os sadios brasileiros de outras regiões venham ao Rio de Janeiro. Pela descrição que é feita de nossas desditas, a cidade se transformou numa aldeia medieval, com cadáveres apodrecendo nas ruas, fogueiras queimando colchões e trapos nauseabundos, tudo por conta dos casos de dengue registrados no Estado e não exatamente na cidade do Rio de Janeiro. Para uma população que chega aos 10 milhões no perímetro do Grande Rio, os casos verificados não chegam a configurar uma tragédia, quando muito são um alerta. Além do mais, os episódios fatais foram raros e localizados. Mesmo assim, percebe-se o assanhamento de outras cidades e Estados, gozando a nossa desgraça e adquirindo um motivo a mais para condenar o Rio, transformando-o numa espécie de cidade maldita, onde, além da inocência, perde-se a saúde e a vida.
Não é mole o que o Rio vem sofrendo em termos de discriminação. Perdeu sua nobre condição de cidade-Estado, a solução mais natural desde que levaram a capital da República para bem longe. Foi justamente como cidade-Estado que o Rio conheceu um surto de desenvolvimento que não teve igual, desde os tempos de Rodrigues Alves e Pereira Passos. Em 1975, sem consulta ao povo -mecanismo elementar quando se trata de juntar ou desmembrar dois Estados- o regime militar promoveu a fusão que acabou prejudicando fluminenses e cariocas. Qualquer cidadão, de qualquer área, que circule pelos escalões federais, percebe a má vontade, a restrição moral ou material que desejam impor ao Rio. Como que o punindo pelo fato de ter sido capital federal por tanto tempo, punindo-o por ser alegre e vital, condenando-o por ser o que é: a cidade mais bonita do mundo.
Como bom cabrito, o carioca não berra -embora eu esteja berrando. O certo seria o Rio não passar recibo e continuar o Rio de sempre, mas essa dengue me pegou desprevenido. Afinal, outros Estados e cidades já tiveram a doença da vaca louca e peste suína -e o Rio, através de Manguinhos, fabricou e enviou vacinas e soros às regiões infectadas.
Quanto à dengue, em si, também já fez e continua fazendo estragos em diversos lugares. Tirante os casos extremos, que são poucos, o que nos sobra, com dengue ou sem ela, é aquela gostosa preguiça que os poetas maiores desta nação já cantaram como coisa nossa. Não tentamos fazer o bonde da história andar. Pegamos carona nele e, se nunca chegamos aonde queremos, a viagem em si é boa e dá para todos.




Texto Anterior: Artes plásticas: Exposição "Pelé, a Arte do Rei" é isca para atrair público ao Masp
Próximo Texto: Cinema: Solanas defende a televisão pública
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.