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CARLOS HEITOR CONY
O dengue nosso de cada dia e o Rio de sempre
Pretextos nunca faltaram:
era violência urbana, com os
sequestros, os assaltos, as balas
perdidas. Ou então a depravação
moral, a esbórnia, a licenciosidade de um balneário voltado para
o prazer. Entre o crime e o pecado,
puritanos de diversos feitios e de
outras plagas sempre condenaram o Rio, considerando-o uma
anacrônica mistura da Sodoma
bíblica com a Chicago dos filmes
dos anos 30. Bem verdade que a
violência não é exclusividade carioca, como o Cristo Redentor e o
Pão de Açúcar. Tampouco os excessos da carne são invenção do
carioca. Critica-se em todo o país
a exuberante vitalidade de nossas
mulatas e do nosso mulherio em
geral, que nas praias e nos desfiles
de Carnaval costumam empolgar
aborígenes e forasteiros.
Mas, no ano passado, em pacata cidade do Nordeste brasileiro, o
chamado tríduo momesco deixou
um saldo de 18 estupros e uma estranhíssima orgia, na qual um
cachorro (pastor alemão) teve entusiasmada participação. Não
vou garantir que aqui no Rio já
não se tenha chegado a tal ponto.
Tudo é possível. Mas sempre louvei a imaginação do brasileiro,
sobretudo em matéria de pagamento de dívida externa, de calote interno e de esbórnia sexual.
Para falar a verdade, não são
apenas os brasileiros de outros
rincões que estão nessa de puxar o
tapete do Rio. Em outubro passado, atravessando o sul da França,
peguei uma tempestade perto de
Lyon. O primeiro hotel com garagem me serviu de abrigo. Sem nada a fazer, liguei a televisão e vi
um documentário que mostrava
os perigos do Rio: um inocente tedesco, branco e virginal como
uma valquíria wagneriana, levou
para a praia óculos, videogravador, relógio de pulso e radinho de
pilha, além de sua tradicional
inocência. O documentário mostrava o mar, a paisagem, o sol -e
evidentemente o alemão, embasbacado diante de tanta e tamanha beleza. Corte rápido para
dois pivetes que se aproximam,
como quem não quer nada. O alemão vai dar um mergulho e volta
para sua esteira. Sim, a esteira resistira ao assalto, mas o equipamento de primeiro-mundista tinha se evaporado. A voz off do
narrador advertia: "Se você não
quer perder o que é seu, evite o
Rio de Janeiro".
Bom, já contei aqui ou em outro
canto que fui roubado no aeroporto de Genebra, no histórico dia
7 de setembro de 1990. Passei pela
gravíssima crise de identidade da
qual já dei notícia, pois fiquei sem
documentos e sem dólares. Não
vou cometer a insânia de comparar o Rio com Genebra em matéria de assaltos. Mas onde há homem há o humano -e o crime é
humano.
A onda mais recente, agora, é a
epidemia de dengue. Leio nas folhas que diversos Estados estão
tomando providências para evitar que os sadios brasileiros de
outras regiões venham ao Rio de
Janeiro. Pela descrição que é feita
de nossas desditas, a cidade se
transformou numa aldeia medieval, com cadáveres apodrecendo
nas ruas, fogueiras queimando
colchões e trapos nauseabundos,
tudo por conta dos casos de dengue registrados no Estado e não
exatamente na cidade do Rio de
Janeiro. Para uma população que
chega aos 10 milhões no perímetro do Grande Rio, os casos verificados não chegam a configurar
uma tragédia, quando muito são
um alerta. Além do mais, os episódios fatais foram raros e localizados. Mesmo assim, percebe-se o
assanhamento de outras cidades
e Estados, gozando a nossa desgraça e adquirindo um motivo a
mais para condenar o Rio, transformando-o numa espécie de cidade maldita, onde, além da inocência, perde-se a saúde e a vida.
Não é mole o que o Rio vem sofrendo em termos de discriminação. Perdeu sua nobre condição
de cidade-Estado, a solução mais
natural desde que levaram a capital da República para bem longe. Foi justamente como cidade-Estado que o Rio conheceu um
surto de desenvolvimento que
não teve igual, desde os tempos de
Rodrigues Alves e Pereira Passos.
Em 1975, sem consulta ao povo
-mecanismo elementar quando
se trata de juntar ou desmembrar
dois Estados- o regime militar
promoveu a fusão que acabou
prejudicando fluminenses e cariocas. Qualquer cidadão, de
qualquer área, que circule pelos
escalões federais, percebe a má
vontade, a restrição moral ou
material que desejam impor ao
Rio. Como que o punindo pelo fato de ter sido capital federal por
tanto tempo, punindo-o por ser
alegre e vital, condenando-o por
ser o que é: a cidade mais bonita
do mundo.
Como bom cabrito, o carioca
não berra -embora eu esteja
berrando. O certo seria o Rio não
passar recibo e continuar o Rio de
sempre, mas essa dengue me pegou desprevenido. Afinal, outros
Estados e cidades já tiveram a
doença da vaca louca e peste suína -e o Rio, através de Manguinhos, fabricou e enviou vacinas e
soros às regiões infectadas.
Quanto à dengue, em si, também já fez e continua fazendo estragos em diversos lugares. Tirante os casos extremos, que são poucos, o que nos sobra, com dengue
ou sem ela, é aquela gostosa preguiça que os poetas maiores desta
nação já cantaram como coisa
nossa. Não tentamos fazer o bonde da história andar. Pegamos
carona nele e, se nunca chegamos
aonde queremos, a viagem em si é
boa e dá para todos.
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