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São Paulo, sábado, 01 de fevereiro de 2003

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INÉDITOS

À ponta nua

France Presse
Alfredo Rota (dir.) vence adversário nas Olimpíadas de Sydney, em 2000; a esgrima é tema do novo romance de Pérez-Reverte



Em uma Espanha dividida entre a velha ordem monárquica e as promessas do ideário republicano, Arturo Pérez-Reverte, 51, ambienta seu "O Mestre de Esgrima", uma história de crime, sexo e suspense


Eleito na semana passada para a Real Academia Espanhola, numa escolha polêmica como a de Paulo Coelho para nossa Academia Brasileira de Letras, o escritor best-seller espanhol Arturo Pérez-Reverte, 51, tem mais um título lançado no Brasil. A Companhia das Letras traz agora "O Mestre de Esgrima", título de 1988, ainda inédito por aqui. Em 1992, o livro ganhou versão cinematográfica com direção de Pedro Olea. Não foi a única vez que sua obra visitou as telas. Em 99, Roman Polanski transformou seu "O Último Portal" na película "O Clube Dumas". Leia abaixo trecho de "O Mestre de Esgrima".
 
"Ficou um bom tempo parado na rua, apoiado na bengala, observando o céu escuro. O manto de nuvens tinha se rasgado para descobrir algumas estrelas. Qualquer transeunte que passasse perto dele sem dúvida teria ficado surpreso com a expressão do seu rosto, apenas iluminado pela pálida chama dos lampiões a gás. A magra fisionomia do mestre-de-armas parecia talhada em pedra, como se a lava que momentos antes ardia e se tivesse solidificado sob o sopro de um frio glacial. Não era somente o seu rosto. Sentia o coração bater muito lentamente no peito, tranquilo e pausado, como a pulsação que perpassava por suas têmporas. Não sabia por que, ou, mais exatamente, se negava a aprofundar as razões, mas desde que vira o cadáver nu e mutilado de Adela de Otero, a confusão que nas últimas horas atarantava sua mente se dissipara como por encanto. Era como se a atmosfera glacial do necrotério houvesse deixado uma fria marca dentro de si. Sua mente estava agora desanuviada. Podia sentir o controle perfeito do último dos músculos do seu corpo. Era como se o mundo ao seu redor houvesse voltado à sua exata dimensão e ele pudesse novamente contemplá-lo a seu modo, um pouco distante, com a velha serenidade recobrada.
Que havia acontecido com ele? O mestre de esgrima ignorava. Apenas tinha a certeza de que, por algum motivo obscuro, a morte de Adela de Otero o havia libertado, fazendo se desvanecer aquela sensação de vergonha, de humilhação, que o atormentara até a loucura nas últimas semanas. Que tortuosa satisfação experimentava agora, ao descobrir que não havia sido enganado por um carrasco, mas por uma vítima! Isso mudava as coisas. Por fim, tinha o triste consolo de saber que aquilo não havia sido a intriga de uma mulher, mas um plano meticulosamente executado por alguém sem escrúpulos, um cruel assassino, um desalmado cuja identidade ainda ignorava. Mas talvez esse homem o estivesse esperando a alguns passos dali, graças aos documentos que Agapito Cárceles já devia ter decifrado na casa de Calle Bordadores. Chegava a hora de virar a página. A marionete, saindo do jogo, arrebentava os cordéis. Agora passaria a agir por iniciativa própria, por isso não tinha dito nada à polícia. Afastada a perturbação, consolidava-se dentro de si uma fria cólera, um ódio imenso, lúcido e tranquilo.
O mestre de esgrima aspirou profundamente o ar fresco da noite, empunhou com firmeza a bengala e tomou o caminho de casa. Havia chegado o momento de saber, porque soava a hora da vingança.
Teve de fazer alguns desvios. Embora já fossem onze da noite, as ruas estavam agitadas. Piquetes de soldados e guardas a cavalo patrulhavam por toda parte. Na esquina da Calle Hileras, viu os restos de uma barricada, que vários populares desmontavam sob a supervisão da força pública. Na altura da Plaza Mayor ouvia-se um distante barulho de tumulto, e um piquete de alabardeiros da Guarda andava em frente ao Teatro Real com as baionetas caladas nos fuzis. A noite se apresentava agitada, mas Jaime Astarloa mal prestou atenção no que acontecia à sua volta, concentrado que ia em seus pensamentos. Subiu apressado os degraus da escada e abriu a porta, esperando encontrar Cárceles. Mas a casa estava vazia.
Acendeu um fósforo e aproximou-o da mecha do lampião a querosene, surpreso com a ausência do jornalista. Assaltado por maus presságios, procurou sem resultado no quarto e na sala de armas. Voltando ao gabinete, espiou debaixo do sofá e atrás dos livros da estante, mas os documentos também não estavam lá. Aquilo era um absurdo, disse consigo mesmo. Agapito Cárceles não podia ter ido tranquilamente embora sem antes falar com ele. Onde teria guardado os papéis? O curso dos seus pensamentos levou-o a um ponto que não pôde abordar sem um sobressalto: teria ele levado o envelope consigo?
Seus olhos deram com uma folha de papel posta em cima da escrivaninha. Antes de sair, Cárceles escrevera um bilhete: "Prezado dom Jaime: A coisa está bem encaminhada. Vejo-me obrigado a me ausentar para fazer umas verificações. Confie em mim".
O bilhete nem assinado estava. O mestre de esgrima ficou um instante com ele entre os dedos, antes de amassá-lo, jogando-o no chão. Estava claro que Cárceles tinha levado os documentos, o que o fez sentir uma súbita ira. Lamentou imediatamente ter depositado sua confiança no jornalista e se amaldiçoou em voz alta por sua estupidez. Sabia Deus onde aquele indivíduo estaria passeando com os documentos que tinham custado a vida de Luis de Ayala e Adela de Otero."


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