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CARLOS HEITOR CONY
Assim passa a glória do mundo
O cine -e o baile, de certo modo- estavam sobre o patrocínio do castíssimo santo
"QUERO BEBER, cantar asneiras..." -o desabafo foi
feito por um rapaz que
estava tuberculoso e era poeta, num
dos Carnavais antigos. Ainda existem tuberculosos e poetas no mercado, mas ninguém precisa de datas
especiais para beber e cantar asneiras. Tem-se o ano todo para isso. O
Carnaval é um pleonasmo na vida e
no comportamento do brasileiro. A
festa existe e resiste. Incorpora elementos novos, e embora mudando
sempre, continua igual.
Os jornais cassaram de sua enxuta
linguagem a expressão "tríduo momesco". As autoridades, em órbita
estadual e municipal, cassaram o
próprio Rei Momo, elas aparecem
mais do que o soberano da folia. Enxugou-se o carnaval de excessos
provincianos e a festa, passada a limpo, conseguiu a façanha paradoxal
de ser mais cosmopolita à custa de
um último ranço provinciano: a presença dos ricos e famosos que insistem em abrilhantar um evento que
tem brilho suficiente e autônomo.
Se os jornais enxugaram sua linguagem, se as prefeituras enxugaram os excessos de orgia, se as próprias escolas de samba também enxugaram, arquivando o gostoso mau
gosto de antanho, trocando-o pela
discutível erudição imposta de cima
para baixo, nada de mais que, em determinado ano, eu começasse o meu
carnaval pelo baile dos Enxutos, baile que por sinal não houve mas foi
como se houvesse.
Deram-me uma opção: cobrir o
Baile do Pão de Açúcar, bolação recente de empresário pouco recente,
ou o Baile dos Enxutos, mais adequado às propostas de uma festa que
-segundo os entendidos- procura
liberar instintos.
Fui meter as fuças nos enxutos e
no seu famoso baile, na praça Tiradentes. Dei com o nariz na porta: O
Cinema São José, em cujos abafados
salões se realizaria o baile, estava fechado. Um cartaz feito às pressas comunicava ao povo que a festa fora
suspensa "por motivo de força
maior".
Já havia candidatos à passarela do
Cine São José (não sei qual a diferença entre cinema e cine, mas o São
José não é cinema, é cine). Houve
estupor, perplexidade e cólera nas
calçadas adjacentes. E os enxutos,
depois de estuporados, perplexos e
coléricos, atingiram um estado de
excitação suplementar não previsto
na efeméride. Erram aqueles que,
por má informação ou preconceito,
acreditam que os enxutos desmaiam à toa, pedindo sais. Com a
barra pesada daquela época, o enxuto era antes de tudo um forte. Sobretudo em horas tais e tantas.
Ameaçaram tomar providências
genéricas e particulares, um deles
constatou a falta de cultura nos escalões policiais que nos protegem a
moral e a compostura. Um outro
anunciou que se queixaria ao bispo,
pois o cine -e o baile, de certo modo- estavam sobre o patrocínio do
castíssimo santo.
Como diria Machado de Assis: "ao
pé" da praça Tiradentes, numa das
esquinas da rua Gomes Freire, funcionava um baile promovido pelos
comerciantes locais. As démarches
foram bem-sucedidas -um exemplo que os Bin Laden e Bush da vida
podiam aprender com o Manolo,
dono do Bar Paulistinha, e com a
aguerrida comissão de frente dos
enxutos, que aceitou pragmaticamente o argumento da "força
maior", deu a volta por cima e descolou uma festa que parecia perdida.
Tal como o Baile dos Enxutos, o
Baile do Paulistinha acabou não havendo, havendo antes uma gentil
mistura dos dois. E todos puderam
assistir ao emocionante desfile dos
rapazes assumidos que assumiram a
liderança dos acontecimentos e da
passarela. Foram poucos, por sinal,
mas bastantes.
Em linhas gerais, um travesti fantasiado é o contrário de um iceberg
que na superfície só mostra um oitavo do seu volume. Ele coloca na cabeça um penacho tão alto e relevante que equivale a sete oitavos do conjunto. O que fica embaixo (o corpo
do enxuto), por mais rebolativo que
seja, fica submerso naquele mar de
bananas, pluma e parafernálias outras.
A turma do sereno fica olhando,
vaia cada vez que aparece um deles.
Já disseram que a vaia é o aplauso
dos que não gostam. Num desfile de
travestis, a vaia é o aplauso dos que
gostam mesmo. O homem comum
tem bom coração e aprecia o esforço
dos rapazes que metem os peitos na
competição, peitos inchados de hormônios e reforçados de silicone. A
festa é deles. Eles são a festa.
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