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MARCELO COELHO
Onde está a inocência das "garotas Sandy'?
Deve ser culpa da Telefônica. Às
vezes, quando chego em casa, encontro minha secretária eletrônica entupida de recados. Não são
para mim. São para o fã-clube de
Sandy e Júnior.
Até que acho bonitinho. Em geral, são crianças bem pequenas;
não entendem o que está acontecendo; insistem várias vezes antes
de perceber, pelo ar de poucos
amigos da mensagem que deixo
gravada no aparelho, que não sou
o Júnior, muito menos a Sandy.
Aliás, ninguém procura pelo Júnior. Só querem saber da Sandy. E
nem sempre são crianças. Pessoas
adultas, não raro mulheres, apelam com voz pastosa por um minuto de carinho, meiguice e atenção.
Nunca vi os programas da dupla na TV. De todo modo, fiquei
sabendo que Sandy atrai os marmanjos que lêem a revista "VIP",
e sei que atrai as marmanjas que
ligam para minha casa.
A Revista da Folha deste domingo trouxe uma reportagem
que me ajuda a entender um pouco essa mania. Tinha por título
"Garotas Sandy". Ou seja, aquelas adolescentes que são certinhas
e comportadas. Tiram as melhores notas, colecionam bichos de
pelúcia, querem casar virgens,
passam a limpo os cadernos da
escola, nem pensam em fumar ou
beber, choram lendo poesia e não
dão beijo na boca em público.
A reportagem mostrava algumas moças desse gênero. Aparentam felicidade. Não tenho nada
contra. Uma pessoa que aparenta
ser feliz deve ser feliz.
"Ajo pela minha cabeça. O que
eu acho ninguém muda", diz a
"Sandy-girl" Juliana Sbarai, de 16
anos; a foto da moça tem como
fundo duas prateleiras abarrotadas de ursinhos de pelúcia. Os
pais aprovam.
Talvez o errado, o louco, seja eu.
Mas fiquei preocupado com essas
julianas, bárbaras e patrícias que
se orgulham de ser tão parecidas
com a Sandy.
A psicóloga Ana Letícia Moliterno, entrevistada na reportagem, vai ao ponto quando diz que
"a Sandy não é adolescente, é infantil... Se não viver a adolescência agora, ela vai acabar sendo
uma menina de 15, 16 anos, aos
23". Sem dúvida, há uma infantilidade forçada nessas mocinhas
que choram e não beijam na boca. O que me parece mais assustador é o fato de que essa infantilidade forçada, falsa, termine sendo o motivo que explica a atração
sexual que Sandy exerce entre os
leitores de "VIP" e as apaixonadas de minha secretária eletrônica.
Lolita, a ninfeta de Nabokov,
era a menina sexualizada antes
do tempo; jogava perversamente
com o inocente Hubert. Se isso era
diabólico, o que dizer de uma
Sandy, que, negando sua própria
sexualidade juvenil, finge ser a
inocente que de fato é, para jogar
com a perversidade de uma lésbica ou de um pedófilo que se reduzem, ligando para o fã-clube, à
inocência infantil?
Claro que nada de perverso passa pelas cabecinhas das julianas e
patrícias. Quanto de provocação
se esconde nessa normalidade de
boas alunas? Não sabemos. Numa era sem inocência, a própria
inocência pode perfeitamente ser
lida como uma perversão. O urso
de pelúcia vale tanto quanto o
chicote da Tiazinha. Tudo se resume a uma questão de "tribos".
Ser punk ou ser Sandy, ser rapper
ou patricinha, no fundo é indiferente, pois sempre será uma adesão à mídia.
De um lado, isso é um progresso. Cada um tem a liberdade de
encontrar a sua "tribo", num clima de tolerância total. Deixa de
fazer sentido a denúncia de Lacan quanto ao "imperativo do gozo", isto é, a tendência moderna
de exigir, totalitariamente, que
cada pessoa se liberte.
De outro lado, isso é um retrocesso. O modelo Sandy não tem
nada de autônomo, de livre, de
individual. Segue a lógica do consumo e do show business. A menina que imita Sandy pode enfrentar a gozação das colegas, mas está legitimada pela existência televisiva de seu modelo.
Há liberdade, há independência nisso? Nada é livre, nada é autêntico, quando pode ser resumido a um nicho de consumo, a um
"estilo de vida", a uma "atitude"
da qual o detentor se orgulha, a
ponto de posar para fotos de revista.
Essa é a perversidade básica,
tanto das "normaizinhas" quanto das "louconas", tanto das reprimidas quanto das liberadas.
Vende-se uma imagem de opção
individual que está prefigurada
nas lojas, nos filmes, nas escolas,
que cada "tribo" vai frequentar.
O subjetivo só se afirma quando
recebe um rótulo reconhecível:
patricinha, nerd, hipponga, maconheira, freak, sandy.
Cada qual escolhe seu próprio
rótulo como se estivesse num supermercado. A liberdade de escolha existe. O que não existe é a capacidade de se conhecer profundamente; de ouvir, dentro da alma, uma ressonância mais grave
e cheia, mais própria, que diga a
cada um o segredo da revolta, do
inconformismo, da juventude
-valor em cuja busca, se formos
honestos, consumiremos toda a
vida.
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