São Paulo, quarta-feira, 01 de março de 2000


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MARCELO COELHO
Onde está a inocência das "garotas Sandy'?

Deve ser culpa da Telefônica. Às vezes, quando chego em casa, encontro minha secretária eletrônica entupida de recados. Não são para mim. São para o fã-clube de Sandy e Júnior.
Até que acho bonitinho. Em geral, são crianças bem pequenas; não entendem o que está acontecendo; insistem várias vezes antes de perceber, pelo ar de poucos amigos da mensagem que deixo gravada no aparelho, que não sou o Júnior, muito menos a Sandy.
Aliás, ninguém procura pelo Júnior. Só querem saber da Sandy. E nem sempre são crianças. Pessoas adultas, não raro mulheres, apelam com voz pastosa por um minuto de carinho, meiguice e atenção.
Nunca vi os programas da dupla na TV. De todo modo, fiquei sabendo que Sandy atrai os marmanjos que lêem a revista "VIP", e sei que atrai as marmanjas que ligam para minha casa.
A Revista da Folha deste domingo trouxe uma reportagem que me ajuda a entender um pouco essa mania. Tinha por título "Garotas Sandy". Ou seja, aquelas adolescentes que são certinhas e comportadas. Tiram as melhores notas, colecionam bichos de pelúcia, querem casar virgens, passam a limpo os cadernos da escola, nem pensam em fumar ou beber, choram lendo poesia e não dão beijo na boca em público.
A reportagem mostrava algumas moças desse gênero. Aparentam felicidade. Não tenho nada contra. Uma pessoa que aparenta ser feliz deve ser feliz.
"Ajo pela minha cabeça. O que eu acho ninguém muda", diz a "Sandy-girl" Juliana Sbarai, de 16 anos; a foto da moça tem como fundo duas prateleiras abarrotadas de ursinhos de pelúcia. Os pais aprovam.
Talvez o errado, o louco, seja eu. Mas fiquei preocupado com essas julianas, bárbaras e patrícias que se orgulham de ser tão parecidas com a Sandy.
A psicóloga Ana Letícia Moliterno, entrevistada na reportagem, vai ao ponto quando diz que "a Sandy não é adolescente, é infantil... Se não viver a adolescência agora, ela vai acabar sendo uma menina de 15, 16 anos, aos 23". Sem dúvida, há uma infantilidade forçada nessas mocinhas que choram e não beijam na boca. O que me parece mais assustador é o fato de que essa infantilidade forçada, falsa, termine sendo o motivo que explica a atração sexual que Sandy exerce entre os leitores de "VIP" e as apaixonadas de minha secretária eletrônica.
Lolita, a ninfeta de Nabokov, era a menina sexualizada antes do tempo; jogava perversamente com o inocente Hubert. Se isso era diabólico, o que dizer de uma Sandy, que, negando sua própria sexualidade juvenil, finge ser a inocente que de fato é, para jogar com a perversidade de uma lésbica ou de um pedófilo que se reduzem, ligando para o fã-clube, à inocência infantil?
Claro que nada de perverso passa pelas cabecinhas das julianas e patrícias. Quanto de provocação se esconde nessa normalidade de boas alunas? Não sabemos. Numa era sem inocência, a própria inocência pode perfeitamente ser lida como uma perversão. O urso de pelúcia vale tanto quanto o chicote da Tiazinha. Tudo se resume a uma questão de "tribos". Ser punk ou ser Sandy, ser rapper ou patricinha, no fundo é indiferente, pois sempre será uma adesão à mídia.
De um lado, isso é um progresso. Cada um tem a liberdade de encontrar a sua "tribo", num clima de tolerância total. Deixa de fazer sentido a denúncia de Lacan quanto ao "imperativo do gozo", isto é, a tendência moderna de exigir, totalitariamente, que cada pessoa se liberte.
De outro lado, isso é um retrocesso. O modelo Sandy não tem nada de autônomo, de livre, de individual. Segue a lógica do consumo e do show business. A menina que imita Sandy pode enfrentar a gozação das colegas, mas está legitimada pela existência televisiva de seu modelo.
Há liberdade, há independência nisso? Nada é livre, nada é autêntico, quando pode ser resumido a um nicho de consumo, a um "estilo de vida", a uma "atitude" da qual o detentor se orgulha, a ponto de posar para fotos de revista.
Essa é a perversidade básica, tanto das "normaizinhas" quanto das "louconas", tanto das reprimidas quanto das liberadas. Vende-se uma imagem de opção individual que está prefigurada nas lojas, nos filmes, nas escolas, que cada "tribo" vai frequentar. O subjetivo só se afirma quando recebe um rótulo reconhecível: patricinha, nerd, hipponga, maconheira, freak, sandy.
Cada qual escolhe seu próprio rótulo como se estivesse num supermercado. A liberdade de escolha existe. O que não existe é a capacidade de se conhecer profundamente; de ouvir, dentro da alma, uma ressonância mais grave e cheia, mais própria, que diga a cada um o segredo da revolta, do inconformismo, da juventude -valor em cuja busca, se formos honestos, consumiremos toda a vida.


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