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WALTER SALLES
Kaurismäki redefine o cinema da errância e da identidade
Filmes sobre a questão da
identidade marcaram toda
uma geração de cinéfilos. Antonioni foi o mestre no assunto, arquitetando uma trilogia extraordinária nos anos 70. "Blow Up -
Depois daquele Beijo", sobre a
perda da identidade. "Passageiro
Profissão Repórter", sobre a troca
de identidade, com Jack Nicholson e Maria Schneider em estado
de graça. "Zabriskie Point", sobre
a implosão da identidade. Como
pano de fundo, a desumanização
do mundo pós-industrial, a morte
das utopias no final dos anos 60.
Antonioni ainda escreveu um
roteiro de uma radicalidade poética de arrepiar, "Tecnicamente
Doce", sobre um jornalista italiano que vive uma crise existencial,
abandona a Sardenha e desaparece na Amazônia brasileira.
Nunca filmou o roteiro, que contém algumas das cenas mais dilacerantes jamais postas no papel.
Depois veio Wenders. Primeiro
com filmes como "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo",
em que todo o desconforto de ser
alemão no pós-guerra se faz sentir. Filho fílmico de Antonioni e
de Nicholas Ray, Wenders continuou investigando a questão da
errância no ótimo "O Amigo
Americano" e depois em "Paris,
Texas". A partir daí, foi ladeira
abaixo: começou a preencher todos os silêncios, os espaços vazios
que faziam o charme dos seus primeiros filmes, intencionalmente
lacunares e imperfeitos.
Com seus personagens desajustados, vindos muitas vezes de latitudes diferentes e tentando sobreviver em países cujos códigos não
dominam, Jim Jarmusch adicionou humor nessa feijoada. "Estranhos no Paraíso" e "Daunbailó" oxigenaram o cinema que falava de exílio e errância nos anos
80.
Quando parecia reinar uma
certa calmaria na área, Aki Kaurismäki nos dá "O Homem sem
Passado". O filme, que estreou
ontem no Rio de Janeiro e estará
em cartaz em São Paulo a partir
da próxima sexta, não é somente
um dos melhores filmes sobre a
questão da identidade feitos nos
últimos anos. É um dos melhores
filmes dos últimos anos, ponto.
A trama poderia se passar nas
terras de Rosinha Garotinho. Um
homem desce na estação de trem
de uma metrópole e é violentamente agredido por três desconhecidos, que lhe surrupiam todos os seus pertences. Todos, não.
Sobra uma máscara de soldador,
único indício da identidade do
indivíduo que, sem papéis, é levado em coma para um hospital.
A tragédia pára por aí. Kaurismäki não está interessado no lado policial da história e muito
menos em explorar o passado do
seu herói amnésico. Quando
acorda no hospital e arranca as
bandagens e tubos de oxigênio
que o aprisionam, o homem ganha novamente as ruas com a leveza e a inocência de uma criança. Aí reside o achado de Kaurismäki: privado do peso da memória e, portanto, de preconceitos, o
homem vai viver uma vida potencialmente mais interessante do
que a anterior.
Com um humor desconcertante
e um sentido do burlesco que lembra os melhores momentos do cinema mudo, Kaurismäki vai
acompanhando a reintegração
do seu personagem naquilo que
os sociólogos chamariam de "tecido social". Ele vive -e bebe-
com os sem-teto da periferia de
Helsinque, planta batatas minúsculas, rouba eletricidade da rua.
Cada uma dessas cenas aparentemente tão simples é um pequeno
milagre de encenação.
De deriva em deriva, o homem
acaba aterrissando no Exército
da Salvação. Mais exatamente
nos braços de uma missionária
do local, Irma (vivida pela atriz
finlandesa Kati Outinen, genial).
Kaurismäki não pára por aí. O
melancólico Exército da Salvação
é posto de pernas pro ar com a
chegada do novo inquilino, que
vai revolucionar a instituição a
golpes de... rock'n'roll.
O herói de Kaurismäki não é
soldador à toa. Pouco a pouco, toda uma comunidade se funde à
sua volta. Um arco se fecha. Passa-se da violência inicial para um
mundo com novos códigos, que
renasce com o personagem principal do filme.
Sem psicologismos, sem açúcar,
mas com afeto, Kaurismäki junta
os cacos do passado e injeta utopia no sonho perdido. Reinventa
o presente, despojadamente. Seu
"O Homem sem Passado" é uma
pequena obra-prima. Pequena
por opção.
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