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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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WALTER SALLES

Kaurismäki redefine o cinema da errância e da identidade

Filmes sobre a questão da identidade marcaram toda uma geração de cinéfilos. Antonioni foi o mestre no assunto, arquitetando uma trilogia extraordinária nos anos 70. "Blow Up - Depois daquele Beijo", sobre a perda da identidade. "Passageiro Profissão Repórter", sobre a troca de identidade, com Jack Nicholson e Maria Schneider em estado de graça. "Zabriskie Point", sobre a implosão da identidade. Como pano de fundo, a desumanização do mundo pós-industrial, a morte das utopias no final dos anos 60.
Antonioni ainda escreveu um roteiro de uma radicalidade poética de arrepiar, "Tecnicamente Doce", sobre um jornalista italiano que vive uma crise existencial, abandona a Sardenha e desaparece na Amazônia brasileira. Nunca filmou o roteiro, que contém algumas das cenas mais dilacerantes jamais postas no papel.
Depois veio Wenders. Primeiro com filmes como "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo", em que todo o desconforto de ser alemão no pós-guerra se faz sentir. Filho fílmico de Antonioni e de Nicholas Ray, Wenders continuou investigando a questão da errância no ótimo "O Amigo Americano" e depois em "Paris, Texas". A partir daí, foi ladeira abaixo: começou a preencher todos os silêncios, os espaços vazios que faziam o charme dos seus primeiros filmes, intencionalmente lacunares e imperfeitos.
Com seus personagens desajustados, vindos muitas vezes de latitudes diferentes e tentando sobreviver em países cujos códigos não dominam, Jim Jarmusch adicionou humor nessa feijoada. "Estranhos no Paraíso" e "Daunbailó" oxigenaram o cinema que falava de exílio e errância nos anos 80.
Quando parecia reinar uma certa calmaria na área, Aki Kaurismäki nos dá "O Homem sem Passado". O filme, que estreou ontem no Rio de Janeiro e estará em cartaz em São Paulo a partir da próxima sexta, não é somente um dos melhores filmes sobre a questão da identidade feitos nos últimos anos. É um dos melhores filmes dos últimos anos, ponto.
A trama poderia se passar nas terras de Rosinha Garotinho. Um homem desce na estação de trem de uma metrópole e é violentamente agredido por três desconhecidos, que lhe surrupiam todos os seus pertences. Todos, não. Sobra uma máscara de soldador, único indício da identidade do indivíduo que, sem papéis, é levado em coma para um hospital.
A tragédia pára por aí. Kaurismäki não está interessado no lado policial da história e muito menos em explorar o passado do seu herói amnésico. Quando acorda no hospital e arranca as bandagens e tubos de oxigênio que o aprisionam, o homem ganha novamente as ruas com a leveza e a inocência de uma criança. Aí reside o achado de Kaurismäki: privado do peso da memória e, portanto, de preconceitos, o homem vai viver uma vida potencialmente mais interessante do que a anterior.
Com um humor desconcertante e um sentido do burlesco que lembra os melhores momentos do cinema mudo, Kaurismäki vai acompanhando a reintegração do seu personagem naquilo que os sociólogos chamariam de "tecido social". Ele vive -e bebe- com os sem-teto da periferia de Helsinque, planta batatas minúsculas, rouba eletricidade da rua. Cada uma dessas cenas aparentemente tão simples é um pequeno milagre de encenação.
De deriva em deriva, o homem acaba aterrissando no Exército da Salvação. Mais exatamente nos braços de uma missionária do local, Irma (vivida pela atriz finlandesa Kati Outinen, genial). Kaurismäki não pára por aí. O melancólico Exército da Salvação é posto de pernas pro ar com a chegada do novo inquilino, que vai revolucionar a instituição a golpes de... rock'n'roll.
O herói de Kaurismäki não é soldador à toa. Pouco a pouco, toda uma comunidade se funde à sua volta. Um arco se fecha. Passa-se da violência inicial para um mundo com novos códigos, que renasce com o personagem principal do filme.
Sem psicologismos, sem açúcar, mas com afeto, Kaurismäki junta os cacos do passado e injeta utopia no sonho perdido. Reinventa o presente, despojadamente. Seu "O Homem sem Passado" é uma pequena obra-prima. Pequena por opção.


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