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DRAUZIO VARELLA
Atravessar a rua em Hanói
Era como se todos os habitantes do Vietnã tivessem saído de casa para circular de moto
JURO QUE nunca vi tantas motos
ao mesmo tempo. Contadas as
que trafegam um mês inteiro
pela 23 de Maio, Radial Leste e marginais, a soma não chega aos pés das
motinhos e lambretas que circulam
pelas ruas centrais de Hanói, a qualquer hora do dia.
Na época da colonização francesa,
a célebre capital do Vietnã ficou conhecida como a cidade das bicicletas, tradição que se manteve depois
da guerra contra os Estados Unidos.
Com a adoção do modelo capitalista,
entretanto, os vietnamitas resolveram transformá-la numa cidade
motorizada.
Não há assaltantes nas ruas, no
máximo, um batedor de carteira à
moda antiga, avisou o porteiro do
hotel. No entanto, acrescentou,
atravessar as ruas é um perigo, porque as motos trafegam em ambos os
sentidos e os semáforos são raros.
No final da preleção, o conselho
mais relevante:
- Os acidentes só acontecem
quando o transeunte, assustado
com o movimento, corre ao fazer a
travessia. É preciso cruzar em passos lentos. Sangue frio.
Acostumado a correr risco de
morte nas ruas de São Paulo, Rio,
Recife e outras metrópoles brasileiras, considerei provinciana a preocupação.
Entreguei ao taxista um cartão
com o endereço anotado pelo funcionário do hotel, e seguimos em silêncio forçado.
Ao chegar ao destino, ele disparou
a falar na língua natal e a fazer sinais
que pareciam apontar para o outro
lado da rua.
Parei no meio-fio do cruzamento.
Então, percebi a dificuldade da empreitada. As motos vinham às centenas em ambos os sentidos, num movimento ininterrupto embaralhado
por ultrapassagens e conversões
inesperadas à direita e à esquerda. O
ronco dos motores era entrecortado
por um buzinaço frenético, capaz de
ensurdecer o mais barulhento de
nossos motoqueiros.
Meu olhar aflito vasculhou o quarteirão à procura de um semáforo salvador ou de uma faixa de segurança,
que fosse. Nem sombra de um nem
da outra. Resolvi aguardar, na esperança de que o tráfego arrefecesse.
Tempo perdido, era como se todos
os habitantes do Vietnã tivessem
saído de casa para circular de moto.
Quem sabe se no meio da quadra,
sem as conversões para a direita e
para a esquerda do cruzamento, não
seria mais fácil?
Andei cem metros e parei. O tráfego e as buzinas intermitentes expuseram o ridículo de minha situação.
Havia dado a volta ao mundo para
chegar ao Vietnã, e acabar ali, paralisado na calçada, feito caipira na cidade grande, incapaz de encontrar
uma brecha no trânsito.
Três vezes ensaiei descer da calçada. Numa delas consegui dar dois
passos, para recuar de um salto assim que a primeira máquina infernal se aproximou ameaçadoramente, com um camicase com a mulher e
o filho na garupa. Guardadas as devidas proporções, fiz idéia do que passaram os soldados franceses e americanos atacados em campo de batalha por inimigos onipresentes, determinados a mandá-los de volta para casa.
Quando o desânimo estava prestes a me dominar, divisei duas escolares do lado oposto, perfiladas como bonecas chinesas. Em câmera
lenta, a passos miúdos, elas desceram da calçada e vieram em minha
direção sem mover a cabeça.
Não pude crer no que assisti. Assim como as águas do Mar Vermelho se afastaram para o povo judaico
passar, as motos desviavam das meninas. Parecia um número de circo:
quando a colisão se tornava iminente, o motoqueiro manobrava com
habilidade para evitá-la.
Quando as vi sãs e salvas do meu
lado, fui tomado de brios e ensaiei os
primeiros passos. As motos começaram a passar por trás, pela frente e
pelos lados. Que aflitivo aquele mar
motorizado em minha direção. Senti como se fosse um boneco de boliche alvejado por centenas de bolas
de ferro, como se percorresse um
desfiladeiro lotado de franco-atiradores, como se estivesse num morro
de balas perdidas.
Tive vontade de correr para acabar de vez com aquele suplício. Se tivessem que me atropelar, que o fizessem logo: nada mais angustiante
do que o sofrimento antecipatório.
Então, decidi fazer igualzinho às
meninas: ir em frente bem devagar
sem olhar para os lados; transferir
para os motoqueiros a responsabilidade de preservar minha integridade física.
Por que não entregar a sorte em
mãos alheias? Não agimos assim nos
aviões?
Deu certo, fui parar na outra calçada com o coração na boca, porém
incólume. Ao conferir a numeração,
no entanto, constatei que havia confundido o lado da rua.
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