São Paulo, sábado, 01 de março de 2008

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DRAUZIO VARELLA

Atravessar a rua em Hanói

Era como se todos os habitantes do Vietnã tivessem saído de casa para circular de moto

JURO QUE nunca vi tantas motos ao mesmo tempo. Contadas as que trafegam um mês inteiro pela 23 de Maio, Radial Leste e marginais, a soma não chega aos pés das motinhos e lambretas que circulam pelas ruas centrais de Hanói, a qualquer hora do dia.
Na época da colonização francesa, a célebre capital do Vietnã ficou conhecida como a cidade das bicicletas, tradição que se manteve depois da guerra contra os Estados Unidos. Com a adoção do modelo capitalista, entretanto, os vietnamitas resolveram transformá-la numa cidade motorizada.
Não há assaltantes nas ruas, no máximo, um batedor de carteira à moda antiga, avisou o porteiro do hotel. No entanto, acrescentou, atravessar as ruas é um perigo, porque as motos trafegam em ambos os sentidos e os semáforos são raros.
No final da preleção, o conselho mais relevante:
- Os acidentes só acontecem quando o transeunte, assustado com o movimento, corre ao fazer a travessia. É preciso cruzar em passos lentos. Sangue frio.
Acostumado a correr risco de morte nas ruas de São Paulo, Rio, Recife e outras metrópoles brasileiras, considerei provinciana a preocupação.
Entreguei ao taxista um cartão com o endereço anotado pelo funcionário do hotel, e seguimos em silêncio forçado.
Ao chegar ao destino, ele disparou a falar na língua natal e a fazer sinais que pareciam apontar para o outro lado da rua.
Parei no meio-fio do cruzamento. Então, percebi a dificuldade da empreitada. As motos vinham às centenas em ambos os sentidos, num movimento ininterrupto embaralhado por ultrapassagens e conversões inesperadas à direita e à esquerda. O ronco dos motores era entrecortado por um buzinaço frenético, capaz de ensurdecer o mais barulhento de nossos motoqueiros.
Meu olhar aflito vasculhou o quarteirão à procura de um semáforo salvador ou de uma faixa de segurança, que fosse. Nem sombra de um nem da outra. Resolvi aguardar, na esperança de que o tráfego arrefecesse. Tempo perdido, era como se todos os habitantes do Vietnã tivessem saído de casa para circular de moto.
Quem sabe se no meio da quadra, sem as conversões para a direita e para a esquerda do cruzamento, não seria mais fácil?
Andei cem metros e parei. O tráfego e as buzinas intermitentes expuseram o ridículo de minha situação. Havia dado a volta ao mundo para chegar ao Vietnã, e acabar ali, paralisado na calçada, feito caipira na cidade grande, incapaz de encontrar uma brecha no trânsito.
Três vezes ensaiei descer da calçada. Numa delas consegui dar dois passos, para recuar de um salto assim que a primeira máquina infernal se aproximou ameaçadoramente, com um camicase com a mulher e o filho na garupa. Guardadas as devidas proporções, fiz idéia do que passaram os soldados franceses e americanos atacados em campo de batalha por inimigos onipresentes, determinados a mandá-los de volta para casa.
Quando o desânimo estava prestes a me dominar, divisei duas escolares do lado oposto, perfiladas como bonecas chinesas. Em câmera lenta, a passos miúdos, elas desceram da calçada e vieram em minha direção sem mover a cabeça.
Não pude crer no que assisti. Assim como as águas do Mar Vermelho se afastaram para o povo judaico passar, as motos desviavam das meninas. Parecia um número de circo: quando a colisão se tornava iminente, o motoqueiro manobrava com habilidade para evitá-la.
Quando as vi sãs e salvas do meu lado, fui tomado de brios e ensaiei os primeiros passos. As motos começaram a passar por trás, pela frente e pelos lados. Que aflitivo aquele mar motorizado em minha direção. Senti como se fosse um boneco de boliche alvejado por centenas de bolas de ferro, como se percorresse um desfiladeiro lotado de franco-atiradores, como se estivesse num morro de balas perdidas.
Tive vontade de correr para acabar de vez com aquele suplício. Se tivessem que me atropelar, que o fizessem logo: nada mais angustiante do que o sofrimento antecipatório.
Então, decidi fazer igualzinho às meninas: ir em frente bem devagar sem olhar para os lados; transferir para os motoqueiros a responsabilidade de preservar minha integridade física.
Por que não entregar a sorte em mãos alheias? Não agimos assim nos aviões?
Deu certo, fui parar na outra calçada com o coração na boca, porém incólume. Ao conferir a numeração, no entanto, constatei que havia confundido o lado da rua.


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