São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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BIA ABRAMO

De almas e negócios


Publicidade dirigida às crianças vende um desejo a quem não tem os meios para realizá-lo

UMA CRIANÇA , de cerca de oito anos, não sabe dizer o nome da fruta -uma manga- que tem na mão. A menina de menos de sete anos abre o armário e conta seus pares de sapatos: são mais de 30. O garoto descreve seu celular: "Tem foto, MP3, é bem básico". E demonstra surpresa de a repórter perguntar se esse celular "bem básico" é seu primeiro: "Não, é o terceiro...".
Essas são cenas de "Criança, a Alma do Negócio", documentário de Estella Renner que foi exibido na TV Cultura no dia 1º de janeiro deste ano, quando a emissora deixou de veicular propaganda dirigida às crianças no horário em que se concentra sua programação infantil (entre 8h e 19h20).
Embora seja possível ver o filme de Estela Renner na internet (www.alana.org.br/CriancaConsumo/Biblioteca.aspx?v=8&pid=40), é pena que não volte à programação justamente hoje, Dia Internacional da Criança no Rádio e na Televisão. A Cultura exibe uma programação especial, mas seria oportuno reexibir o documentário, como forma de retomar uma discussão importante sobre crianças e mídia.
Enquanto tramita no Congresso uma lei que, a exemplo do que ocorre em países desenvolvidos, pretende proibir publicidade dirigida diretamente às crianças, o mercado publicitário reage, ora deblaterando sobre "liberdade de expressão e censura", ora se antecipando à possível aprovação da lei no Congresso e tirando do ar, via o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar, propagandas que foram "longe demais".
O problema é que, como se vê em "Criança, a Alma do Negócio" ou observando uma criança diante da TV, toda publicidade vai longe demais, pois parte de um princípio perverso -vende-se um desejo para quem não tem os meios, nem a autonomia para realizá-lo. É antieducativa por excelência, a não ser que se considere, a sério, a possibilidade de o adestramento para o consumo substituir definitivamente a educação. E aí durma-se com um barulho desses.
Quanto à liberdade de expressão, vale citar artigo de duas juristas, Flávia Piovesan e Tamara Amoroso Gonçalves, publicado aqui mesmo na Folha, em 16/2, que põe um ponto final na tibieza dessa argumentação: "(...) Não há que confundir a publicidade e a liberdade de expressão. (...) Trata-se de um direito [a liberdade de expressão] assegurado às pessoas físicas, abrangendo a livre manifestação do pensamento político, filosófico, religioso ou artístico. O alcance de tal direito não compreende a publicidade -atividade que utiliza meios artísticos visando essencialmente a venda de produtos".


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