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ANÁLISE
Um exemplo inesquecível
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
José Mindlin foi advogado,
jornalista, empresário, secretário de Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras, intelectual íntegro e respeitado
-títulos não lhe faltavam. Mas
quando as pessoas se referiam a
ele em geral usavam um único
adjetivo: "bibliófilo".
Mindlin tornou-se famoso
por sua biblioteca particular,
tão grande quanto notável: tinha ali verdadeiras preciosidades, obras raras, primeiras edições. Era tão grande o acervo
que teve de construir, em sua
casa, um outro prédio só para
abrigar os livros.
Que acabaram ao alcance do
público: num gesto de característica generosidade -Mindlin
era conhecido pela bondade e
pela gentileza, como pude
constatar no curto período em
que com ele convivi- boa parte
dessa biblioteca foi doada à
Universidade de São Paulo.
Colecionar é coisa que muitas pessoas gostam de fazer, e
tudo é colecionável: selos, armas, bijuterias, bibelôs, obras
de arte. Mas colecionar livros, a
bibliofilia, é algo especial. Que
só pôde se disseminar depois
que Gutemberg lançou o livro
impresso. Antes, os textos estavam em pergaminhos manuscritos; eram raríssimos, em geral ficavam em lugares especiais, como a biblioteca de Alexandria, no Egito, em palácios
reais, em mosteiros.
Com o livro impresso o texto
se popularizou; e o tempo foi
dando valor, às vezes extremo
valor, às raridades. Entrem em
sites de livros usados e vocês
constatarão: obras que não são
tão raras assim, mas que se encontram esgotadas, alcançam
preços bem altos. Imaginem o
valor de livros como uma coleção de poemas do grande Petrarca, que Mindlin tinha, um
livro com uma significativa peculiaridade: vários dos poemas
tinham sido vetados pelos censores da Inquisição, que os haviam coberto com tinta preta
-uma tinta que se apagou com
o tempo, revelando os belos, e
agora vitoriosos, textos.
Nesta paixão pelos livros entram vários componentes. Um
deles é cultural. Mindlin, brasileiro de nascimento, era filho
de judeus ucranianos. Pertencia a um grupo humano que,
através da história, ficou conhecido por sua veneração ao
texto, coisa que data de milênios. Pequeno povo da Antiguidade, os judeus não legaram ao
mundo construções gigantescas, como os egípcios, ou obras
de arte, como os gregos; não,
sua contribuição foi um livro,
mas que livro! A Bíblia foi, e
continua a sê-lo, um dos grades
textos fundadores da cultura
ocidental.
Ao lado disso temos o temperamento do bibliófilo. É uma
pessoa que ama o livro, este objeto simples, prático, modesto,
que fica quieto lá na prateleira,
à espera de que um dia nos lembremos de folheá-lo, de consultá-lo, de lê-lo ou de relê-lo. É
claro, nem todos os livros são
obras de arte, nem todos os livros são bons; a página impressa aceita tudo, bobagens, loucuras, ruminações criminosas.
Mas acima de tudo livro é livro, e, como depositário de conhecimento, de emoção, de curiosidades, continua imbatível.
Pode ser que os textos eletrônicos veiculados pelo Kindle se
imponham pela praticidade;
pode ser que no futuro não
existam mais acervos como os
de José Mindlin. Mas a figura
do bibliófilo continuará existindo, porque ela representa o
que de melhor tem o ser humano. Mindlin disso foi um exemplo inesquecível.
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