São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2010

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ANÁLISE

Um exemplo inesquecível

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

José Mindlin foi advogado, jornalista, empresário, secretário de Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras, intelectual íntegro e respeitado -títulos não lhe faltavam. Mas quando as pessoas se referiam a ele em geral usavam um único adjetivo: "bibliófilo".
Mindlin tornou-se famoso por sua biblioteca particular, tão grande quanto notável: tinha ali verdadeiras preciosidades, obras raras, primeiras edições. Era tão grande o acervo que teve de construir, em sua casa, um outro prédio só para abrigar os livros.
Que acabaram ao alcance do público: num gesto de característica generosidade -Mindlin era conhecido pela bondade e pela gentileza, como pude constatar no curto período em que com ele convivi- boa parte dessa biblioteca foi doada à Universidade de São Paulo.
Colecionar é coisa que muitas pessoas gostam de fazer, e tudo é colecionável: selos, armas, bijuterias, bibelôs, obras de arte. Mas colecionar livros, a bibliofilia, é algo especial. Que só pôde se disseminar depois que Gutemberg lançou o livro impresso. Antes, os textos estavam em pergaminhos manuscritos; eram raríssimos, em geral ficavam em lugares especiais, como a biblioteca de Alexandria, no Egito, em palácios reais, em mosteiros.
Com o livro impresso o texto se popularizou; e o tempo foi dando valor, às vezes extremo valor, às raridades. Entrem em sites de livros usados e vocês constatarão: obras que não são tão raras assim, mas que se encontram esgotadas, alcançam preços bem altos. Imaginem o valor de livros como uma coleção de poemas do grande Petrarca, que Mindlin tinha, um livro com uma significativa peculiaridade: vários dos poemas tinham sido vetados pelos censores da Inquisição, que os haviam coberto com tinta preta -uma tinta que se apagou com o tempo, revelando os belos, e agora vitoriosos, textos.
Nesta paixão pelos livros entram vários componentes. Um deles é cultural. Mindlin, brasileiro de nascimento, era filho de judeus ucranianos. Pertencia a um grupo humano que, através da história, ficou conhecido por sua veneração ao texto, coisa que data de milênios. Pequeno povo da Antiguidade, os judeus não legaram ao mundo construções gigantescas, como os egípcios, ou obras de arte, como os gregos; não, sua contribuição foi um livro, mas que livro! A Bíblia foi, e continua a sê-lo, um dos grades textos fundadores da cultura ocidental.
Ao lado disso temos o temperamento do bibliófilo. É uma pessoa que ama o livro, este objeto simples, prático, modesto, que fica quieto lá na prateleira, à espera de que um dia nos lembremos de folheá-lo, de consultá-lo, de lê-lo ou de relê-lo. É claro, nem todos os livros são obras de arte, nem todos os livros são bons; a página impressa aceita tudo, bobagens, loucuras, ruminações criminosas.
Mas acima de tudo livro é livro, e, como depositário de conhecimento, de emoção, de curiosidades, continua imbatível. Pode ser que os textos eletrônicos veiculados pelo Kindle se imponham pela praticidade; pode ser que no futuro não existam mais acervos como os de José Mindlin. Mas a figura do bibliófilo continuará existindo, porque ela representa o que de melhor tem o ser humano. Mindlin disso foi um exemplo inesquecível.


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