São Paulo, sábado, 01 de abril de 2000


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Almodóvar antes do ataque de nervos

Divulgação
Capa do livro de Pedro Almodóvar, que deve chegar às livrarias no dia 10



Gênese do estilo tresloucado do cineasta está em "Fogo nas Entranhas", de 81, sua primeira incursão na literatura, lançada no Brasil este mês


ALMODÓVAR ESCRITOR
Autor já era absurdo e feminista Almodóvar, que deve chegar às livrarias no dia 10

LUIZ CAVERSAN
da Reportagem Local

Um pequeno livro escrito em 1981, daqueles que se lêem em duas horas e se esquecem em meia, traz para o público brasileiro, pela primeira vez, a gênese de toda a loucura criativa de Pedro Almodóvar.
Trata-se da estréia do cineasta espanhol na literatura, "Fogo nas Entranhas", autêntica "pulp fiction" (ficção barata), cujas edições estão esgotadas na Espanha, mas que agora ganha versão para o português.
Há vários aspectos desse livro que impressionam: a quantidade de clichês, as situações inverossímeis, a baixaria do enredo e o grotesco de algumas cenas. Ou seja, subliteratura de primeiríssima qualidade.
Com um predicado a mais: em meio à torrente de sexo desenfreado, ao amontoado de lugares-comuns pseudo-reveladores da alma feminina (e do feminismo do autor) e da crueldade em relação aos homens, encontra-se praticamente um pouco de tudo o que o cineasta viria, em anos posteriores, a desenvolver nos filmes que o tornaram indispensável à cena cinematográfica mundial. Até Hollywood reconheceu isso e deu a ele um Oscar no domingo.
Mas vamos ao livro: em meados do anos 50, o chinês Chu Ming Ho, radicado em Madri, dá início ao seu império industrial, que, nas três décadas seguintes, o transformaria no "magnata dos absorventes femininos".
À medida que vê seu poder e sua fortuna crescerem, Chu Ming Ho vai sendo abandonado, sem piedade, por suas sucessivas amantes, cinco no total
Assim ocorre com Diana, a orgulhosa que se tornou feminista; com Mara, a que teve muitos filhos e vendeu todos a bom preço; com Katy, a mulher de poucas palavras, porque tinha um corpo tão perfeito que nem precisava falar; com Lupe, a severa chefe do departamento pessoal que virou hippie; e finalmente com Raimunda, a candidata a freira que se tornou desenhista de absorventes femininos.
A ingratidão e a crueldade com que é tratado por essas mulheres de personalidades tão complexas e contraditórias fazem com que o chinês rumine sua vingança até que ela se cristalize, definitiva, em sua mente atormentada.
Ele manda uma carta para cada uma das ex, avisando que vai se matar. No entanto, diz, deixará toda a sua fortuna para elas. Desde que: compareçam ao seu enterro, assumam a fábrica, garantam que seja distribuído gratuitamente para toda a cidade o revolucionário absorvente que ele acaba de criar e que, elas mesmas, adotem o tal acessório, concebido para ser usado cotidianamente, não apenas "naqueles dias".
Somente Raimunda não adere ao estranho pacto proposto pelo chinês, o que vai interferir decisivamente no final do livro. Mas até que isso ocorra, ou seja, o livro chegue ao fim, a quantidade de absurdos que Almodóvar desfia é verdadeiramente assombrosa.
O tal absorvente criado por Chu Ming Ho nada mais é que sua vingança contra todas as mulheres do mundo -"umas vadias". Traz em sua fórmula componente químico que deixa quem o usa literalmente com fogo nas entranhas, ou seja, com uma vontade incontrolável de fazer sexo. Com qualquer homem, a qualquer momento, o tempo todo, até que o parceiro, ou vítima, sucumba.
Com a dimensão de uma peste que se alastra pela cidade, a loucura toma conta das mulheres de Madri, independentemente de beleza, idade e condição social.
Choca, surpreende, repugna. Mas diverte, porque é puro cinema almodovariano.
Cada uma com seu repertório psicológico e seus motivos, em geral totalmente fúteis, e qual Dianas ensandecidas, as mulheres vão à caça, destroçando sexualmente todo elemento masculino que encontram pela frente.
Do ponto de vista puramente literário, o livro é cheio de defeitos, exibe lacunas e incongruências. Mas, como exercício de estilo e de imaginação, é de uma riqueza inquestionável.
Almodóvar, como se sabe, adora o universo feminino. Vai fundo nisso ao descrever algumas de suas personagens e os contextos em que transitam. Trata uma delas, por exemplo, como "a mestra de enganar-se a si própria". Para outra, destina estas palavras: "Exploradora do amor, no qual esperava encontrar o tesouro do equilíbrio, da segurança e certa animação. Seu sentido de luta e uma sensatez insana davam a ela um toque de graciosa mediocridade, imprópria de uma heroína".
Veja esse outro trecho do livro: "Para centenas de mulheres madrilenas, a vida tinha ganho um novo objetivo. O fogo que fulminava suas entranhas não tinha descanso. Os homens não conseguiam acalmá-las totalmente (...). Abandonaram filhos, tarefas domésticas, compromissos sociais, deveres profissionais, mães moribundas, ideologias etc para sair à procura de alimento".
Mais que romance ou novela, trata-se de um argumento cinematográfico, cheio de ação e estilo. Obra autêntica do agora "oscarizado" Pedro Almodóvar.


Avaliação:   

Livro: Fogo nas Entranhas Autor: Pedro Almodóvar Editora: Dantes (0/xx/21/239-2380) Quanto: R$ 18 (124 págs.) Lançamento : próximo dia 10


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