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CONTARDO CALLIGARIS
Desemprego
Capa da Folha, na quinta
passada: em fevereiro, na região metropolitana de São Paulo,
o índice de desemprego subiu
mais um pouco.
No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o
tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja
ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de
qualquer forma, é provável que
todos os paulistanos conheçam
um amigo ou um parente que, a
cada manhã, olha no espelho e se
pergunta por que fazer a barba ou
por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente,
que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde
mental, "Adversity, Stress and
Psychopathology" (Adversidade,
Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda
do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma
pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de
depressão e mesmo, às vezes, de
"comportamentos anti-sociais":
alcoolismo, violência familiar e
condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou
da provedora) que não consegue
preencher as expectativas de seus
dependentes. "Se a família não
pode mais contar comigo, perco
minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade
mais danosa para nossa saúde
mental.
Preste atenção: no balcão de um
boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta
não será "quem é você?", mas "o
que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez
tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará
como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento,
de alguma forma, falso. Pois todos
sabemos que somos mais do que
nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões
e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos.
Ao trocarmos cartões de visita,
mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária,
escritor, médica, mecânico, mas
quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do
bar da esquina? O pai preocupado
com a doença do filho? A mulher
que, a caminho do escritório, se
agacha e conversa com o sem-teto
que vive na calçada? O homem
que cantarola Dorival Caymmi
tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por
sua proveniência, e as perguntas
iniciais diziam: quem foram seus
pais e antepassados? Onde você
nasceu? Quais são as dívidas que
você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que
são nossas próprias façanhas que
nos definem. É uma escolha que
deveria nos deixar mais livres,
mas acontece que a praticamos de
um jeito estranho: junto com os
laços que nos prendiam a nossas
origens e ao passado, nossa vida
concreta também é silenciada na
descrição de nossa identidade. E
nos transformamos em sujeitos
abstratos, resumidos por nossa
função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego
nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta
observar que, afinal, nos sobra o
resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu
emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou
palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há
tempos a sermos representados
por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres
lidam com o desemprego melhor
que os homens, como mostra uma
pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and
Mental Health: Understanding
the Interactions between Gender,
Family Roles and Social Class"
(Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e
Classe Social), "American Journal
of Public Health", 2004, 94. Duas
constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos
homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres
casadas com filhos, ao perderem o
emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias.
Explicação: para as mulheres, o
exercício da maternidade ainda
constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os
homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas
e os saltimbancos também têm
uma tarefa crucial: são eles que
podem, aos poucos, convencer a
gente de que é nossa vida concreta
que nos define, não nossa função
produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar
raízes, ou seja, a definir nossa
identidade por uma parcela de
terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos.
Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA,
aderiu ao movimento da volta à
terra. Declamou: "A terra! É lá
que estão nossas raízes. Nenhum
seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem
e seu pedaço de terra". Curioso
precursor de João Pedro Stedile,
ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse
uma relação íntima com seu lote
de terra, o desemprego poderia ser
um aperto econômico, mas não
uma queda no vazio. Pena, já era
tarde demais para isso.
ccalligari@uol.com.br
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